segunda-feira, 31 de agosto de 2009

DO OUTRO LADO DO RIO...





Do Outro Lado do Rio Madeira...



Por Márcia Nunes Maciel e Iremar Antônio Ferreira (IMV/08/2009)


Na margem esquerda do Rio Madeira, do outro lado da cidade de Porto Velho existem várias comunidades atingidas pelas construções das hidrelétricas, algumas já se deslocaram e outras precisarão se deslocar a partir do mês de Agosto de 2009. Dentre essas comunidades há a comunidade Trata-Sério, onde se encontram algumas famílias, que resistem a saírem de seus lugares. Atualmente, depois de terem manifestado suas indignações em vários momentos de articulação política com os movimentos sociais e organizações não-governamentais: no Encontro Sem Fronteira em Janeiro de 2009, em Porto Velho, que reuniu vários segmentos sociais - seringueiros, indígenas, ribeirinhos e urbanos; no Fórum Social Mundial em fevereiro de 2009, na cidade de Belém, no Pará, desejam que seus deslocamentos sejam feitos com dignidade, que suas histórias, suas plantações, seus investimentos, suas vidas construídas em seus lugares, sejam valorizadas.
Estando junto a essas famílias percebemos que possuem uma concepção de valor para o que deve ser indenizado e as empresas outro. Para as comunidades atingidas, o valor é mais que material, é simbólico, diz respeito a suas histórias pessoais e coletivas. Para as construtoras das hidrelétricas no rio Madeira, o valor é capital, mas não no sentido de valorização, ao contrário, tudo que faz parte de uma história e de um mundo específico não tem valor dentro de uma concepção capitalista, e por isso, não é considerado como bem a ser indenizado.
Após uma cumplicidade construída com alguns moradores da comunidade Trata-Sério, fomos convidados a conhecer o mundo do qual fazem parte. Em uma das idas à comunidade, em março de 2009, período em que as águas do Madeira sobem, nós, do IMV, Iremar, Márcia e Cristiane tivemos a oportunidade de conhecer um pouco o ritmo da vida daquele lugar. D. Neuzete nos mostrou seu espaço vivido e lembrado. Tudo que nos mostrava era significado por ela, as árvores, o igarapé, o rio. Ela nos mostrou com orgulho as árvores preservadas por ela que formam um belo bosque e vai até a beira do igarapé Latumia. Ao chegar à beira do igarapé nos explica que no período das cheias o braço desse igarapé, que fica no seu lote, é invadido pelas águas do Madeira e proporciona a passagem de peixes, tornando esse período farto para alimentação com peixes. Para falar das várias cheias nos mostra as marcas das águas nas árvores que ficaram depois de enchentes anteriores, debaixo de um pé de limão às margens do Madeira, em frente à sua casa, apreciamos a beleza do rio e ouvimos a história da família de D. Neuzete e do lugar que foi herdado de geração a geração. É nesse momento que ela nos conta que seus tataravós vieram do nordeste, da cidade de Apudí – RN, no período da exploração da borracha na Amazônia. Também fomos até a parte encharcada, lugar em que fica a seringueira, onde segundo ela, aparece um ser mitológico denominado “Protetora da Seringueira” na figura de uma velha. No caminho, ela nos foi mostrando a sepultura de seu tio e os vários pés de cacau carregados de frutos. Toda essa riqueza cultural não é valorizada nas negociações com as empresas.
O processo de discussão sobre os impactos causados pelas hidrelétricas iniciou-se antes da divulgação dos Estudos de Impactos Ambiental do Complexo Hidrelétrico Rio Madeira, que envolvem obras em: Cachoeira de Santo Antônio, Cachoeira de Jirau, Cachoeira Guajará-Mirim e Cachoeira Esperanza-Bolívia. Permanecemos junto a elas, neste período que, as comunidades atingidas se encontram desestruturadas pelas empresas responsáveis pelo referido empreendimento.
Mesmo havendo as conversas de conscientização das comunidades, antes mesmo das audiências públicas que não davam lugar para manifestações contrárias, nossa ação era voltada para um movimento de resistência às barragens, assim como no decorrer do processo de implantação do empreendimento. Apesar do descontentamento das comunidades e das várias ações judiciais que contestam a construção das barragens, embasados nos frágeis estudos de impactos ambientais, foi autorizado o início das construções na cachoeira de Santo Antônio e posterior Jirau com alteração de local.
Apesar da desestruturação das comunidades, causada pela intervenção da construção das hidrelétricas, essas comunidades conseguem se comunicar entre si e ficam à par da situação que cada uma se encontra. Sabem que muitas pessoas já negociaram suas terras e estão se sentindo lesadas no processo de negociação. As que já foram deslocadas, como a Engenho Velho estão frustradas com a situação em que se encontram, morando em casas pequenas de alvenaria, com espaço reduzido e impróprio para fazer plantações e sem permissão para fazer suas pescarias nas áreas de concentração dos peixes que se encontra na área do canteiro de obras. Diante da situação em que se encontram alguns são silenciados com uma ajuda irrisória para suas sobrevivências. Outros por medo de perderem tudo, preferem não se organizar para reivindicar seus direitos e uma menor parte se movimenta para uma organização coletiva, no intuito de se fortalecerem e não se deixarem enganar no processo de negociação com as empresas.
Dentro desse contexto, é que nós, Iremar, Jorge, Márcia, Vanessa e Cristiane do IMV, Sandra da Rede de Educação Cidadã e Rodrigo do Movimento do Hip-Hop da Floresta, fomos convidados a ir até a comunidade Trata- Sério. Mais que assessoria política, fomos encontrar nossos amigos que conquistamos dentro de um processo de resistência e luta pela vida às margens do Madeira, fomos dizer que eles não estão sozinhos e que nós da cidade de Porto Velho também somos atingidos, portanto solidários.
Sendo assim, no dia 31 de Julho, atravessamos o rio Madeira. Ao chegarmos à outra margem entramos um outro mundo e nos demos conta de coisas que a vida não nos permite ver na cidade, como a beleza do céu e a claridade da lua que nos permitiu contemplar o rio. A tranqüilidade da noite só é interrompida quando vamos até a beira do barranco e ouvimos ao longe no meio da noite o barulho das máquinas trabalhando na construção da barragem na ex-cachoeira Santo Antônio. No amanhecer do outro dia, retornando à beira do barranco nos deparamos com as belezas naturais que surgem a cada período em que as águas do rio vão abaixando, as pedras, os lagos entre as pedras e as praias que começam a aparecer. Em outros tempos, toda essa riqueza natural era usufruída pelas pessoas que vivem nesses lugares para o lazer e para o sustento da vida, pois é nesse período que fazem as plantações de várzea. Hoje, as pessoas que vivem nesses lugares olham para tudo isso com tristeza, o olhar que direcionam para o rio é de despedida. Conversando com Sr. Rosimar e D. Édna eles desabafam o pesar por terem que abandonar o seu lugar depois de uma vida inteira de investimentos. Senhor Rosimar enfatiza que mesmo ainda estando em seu lugar sua vida foi interrompida, porque não pode mais fazer plantações e está à espera do que vai ser resolvido com as empresas, e apesar de tudo isso, seu desejo é ficar em seu lugar, mas sabe que suas terras ficarão debaixo da água e que não terá como viver nelas.
Andando pelo lote de Sr. Rosimar, percebemos as marcas dos cortes das seringueiras que registram a história de seus avós e tios, bem como de D. Neuzete, sua irmã, que tiravam seu sustendo do trabalho com a borracha. Os troncos das mangueiras e das castanheiras nos revelam o tempo que elas foram plantadas no lugar, todas as árvores que existem no lote de Sr. Rosimar, as castanheiras, seringueiras, mangueiras e laranjeiras são testemunhas da história do lugar.
Sr. Rosimar lamenta que as seringueiras e castanheiras que foram plantadas em seu lote não tenham sido incluídas no laudo para indenização, e diz estar indignado com a situação de ter que sair de seu lugar, porque nele estão pessoas da sua família sepultados, a história de três gerações, a relação com seus vizinhos, a vida construída às margens do rio, a sociabilidade do “homem simples” que domina os saberes da pesca, da caça, da plantação e compartilha uma vivência com os que também fazem parte desse mundo. Ele diz que todos que vivem na localidade formam uma grande família e lamenta pelas separações provocadas pelo tal “desenvolvimento”.
D. Neuzete nos aponta para o rio e nos mostra o lugar em que há uma queda d'água, que aparece no período em que o rio fica baixo, o que torna perigoso a navegação nesse lugar. Segundo ela, esse é um dos motivos pelo qual sua comunidade é chamada de Trata-Sério. Quando perguntamos o que a comunidade Trata-Sério significa para ela, a emoção transparece em sua face e ela nos responde que significa tudo, porque foi lá que ela nasceu e viveu até agora e é lá que estão sepultados seus parentes. Relembra que, alguns dos mais velhos estão seputados na primeira localidade que pertenceu a sua família, no Porto Chuelo, em frente a Santo Antônio, e que depois de várias denúncias suas, a empresa que iniciou a construção da hidrelétrica na cachoeira de Santo Antônio, se comprometeu em removê-los para o cemitério de Santo Antônio. Mas, os que estão sepultados na comunidade Trata-Sério não tem nada conversado sobre o seu remanejamento para outro cemitério.
D. Édna, esposa de Sr. Rosimar, diz que, depois de 19 anos que vive com ele e o ajuda nos investimentos feitos no lote, junto com ele ter construído uma vida tranqüila do outro lado rio, longe da cidade, não consegue pensar que vai ter que sair de seu lugar e ter que recomeçar a vida em outro. Ela e Sr. Rosimar dizem que por mais que eles recebam o maior valor em dinheiro pelo lugar onde vivem, esse valor não pagará a vida que eles têm, a importância que o lugar tem para eles, e diante disso, sabem que a vida deles nunca mais será a mesma.
Célio, sobrinho de Sr. Rosimar e D. Neuzete, que vive em sua casinha entre a casa de seus tios, está inconformado, porque a vida que ele vinha construindo para ele, sua esposa e sua filha de dois anos de idade lhe foi tirada. Convidado a falar sobre sua experiência de vida ele começa falando que ao sair de Trata-Sério ele vai procurar um lugar bem afastado que para chegar até esse lugar “seja preciso entrar bem para dentro do rio”. Emocionado, nos fala que o que mais vai sentir falta é da ida até a casa de seu tio todas as manhãs, onde toma café e começa seu dia.
Durante os dois dias conversamos, compartilhamos suas angústias e pensamos formas de organização sócio-econômico e cultural para que diante de tantas perdas, consigam ter em suas novas moradas dignidade e direitos garantidos para eles e as demais comunidades atingidas. Nós, apoiadores, continuaremos a denunciar as violações e a exigir respeito por parte das empresas com os atingidos da beira, do rio, das aldeias, dos seringais e das áreas urbanas.

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