Reflexão em tempo de
reclusão
OS
PEIXES SENTEM!
MANIFESTO
DOS PEIXES PELA VIDA !
Lá pras bandas da
Amazônia, chegou um aviso pelas águas.
A peixarada logo se deu
conta de que dizia respeito a eles...
As águas estavam
turvas, brancas como se diz no período da chuvarada, quando ela fica carregada
de sedimentos, lama, diferente do verão, quando fica clara, com tom esverdeado ou preto...
Era sinal de que algo
de errado estava acontecendo...
O cardume de
branquinhas subindo lá pelas bandas de Calama logo avistou as alterações e procurou os
tucunarés e demais peixes no lago do Acará pra conversar.
Dona Branquinha,
cansada, que tinha acabado de chegar do rio Machado foi logo tomando a palavra:
-Tô vindo de muito
longe, lá das cabeceiras do rio Machado. Passei por cidades grandes e pequenas,
terras indígenas, áreas de preservação, reserva extrativista, assentamentos
rurais, enfrentei cachoeiras e por isso cansei. Em viagem parei na região do
tal Machadinho, onde já derrubaram quase todas as árvores, fizeram pastagens e
tem muito boi, agora entrou a tal da soja e pouca gente nas moradias. A maioria
das moradias estão vazias. Antes por lá tinha muita gente. Mas ouvi dizer que
era pela tal da concentração fundiária. Vi grandes extensões de terra tombada.
O que era de baixo veio pra cima e de cima foi pra baixo, tudo feito com
grandes máquinas. Depois alisavam a terra com maquinas menores e outras
maquinas diferentes jogavam sementes e daí nasceu a tal da soja. Parece um lago
de calmaria, tudo verdinho... Cheguei a me assustar quando passou um pássaro
gigante dando um banho de veneno na soja! Foi também nesta região que vi
igarapés cheios de terra, sem vida, assoreados... Não tem mais peixe nestes
igarapés, porque a chuva aplicada pelo pássaro na lavoura de soja, ao ser
levado pelas águas das chuvas foram contaminando as águas e os peixes morrendo
tudinho.
Dona Pacú-Açú que
escutava pediu um aparte e perguntou:
-Dona Branquinha eu sei
que a senhora é muito rápido na sua viagem, mas queria saber se a senhora
passou por uma vila de pescadores chamada Tabajara¿
-Claro que sim dona
Pacú-Açú e fiquei muito preocupada. Vi pescadores tristes. O lamento era um só
“não temos mais peixe como antigamente, parece que tão sumindo, que o veneno
está matando e ainda querem fazer a barragem aqui em Tabajara”... Ai eu fiquei
preocupada com este desabafo do pescador e quis logo entender o que era essa
tal de barragem. Então, me pus a escutar os pescadores mais velhos, que
sentados na proa da canoa enquanto lançavam suas linhadas pra tentar pescar
algum parente nosso diziam: “a barragem vem ai e vão tirar nóis daqui para dar
lugar ao progresso. Isso aqui tudo vai virar um mar d´água. Vão fazer igual no
rio Madeira. Vão colocar barreira de cimento no rio, trancar tudo lá pra cima,
represar como eles falam, pra poder fazer hidrelétrica, para gerar energia
elétrica pra alumiar o Brasil. Com isso, nóis temos que sair daqui pra ajudar o
Brasil ter mais energia elétrica. Mas, também tô sabendo que o pessoal que mora
lá por São Carlos, Nazaré e Calama, só tem energia de motor gerador, mesmo
tendo duas grandes hidrelétricas em Porto Velho e que tiraram muita gente da
beira do rio pra construírem elas e tem gente que até hoje não recebeu seus
direitos”. Pois é, foi isso que eu ouvi e fiquei muito preocupada e já estava
de saída quando outro pescador ainda disse mais: “tô sabendo que os pescadores
de Santo Antonio, Teotônio, Jaci, Mutum, na Bolívia e região de Guajará Mirim
não tem mais direito de pescar no rio Madeira e que mais de 80% dos peixes
desapareceram, ou seja, morreram com a construção das barragens e como é que os
peixes vão subir o rio com isso no meio do caminho deles... Não tem mais
reprodução dos peixes e com isso os pescadores foram enganados com algumas
compensações e nada mais. Tá todo mundo urrando sem peixe, sem rio, sem comida
e com dívidas pra pagar”.
Dona Curimba balança o
rabo e entra na conversa:
-Então quer dizer que
nossos parentes peixes grandes e pequenos foram mortos pelos construtores dessa
tal barragem e por isso os pescadores da região de Calama tão batendo direto
atrás de nós para mandar pro povo deles de Porto Velho¿ Eles exterminaram com
nossos parentes e ainda sobra pra nós aqui no baixo Madeira¿
Dona Branquinha
tentando ajudar o grupo a entender continuou:
-É, pelo que entendi é
isso mesmo, porque até escutei os seringueiros dizerem que o tal do governo
deles até “trocou terra de preservação lá pras bandas de União Bandeirantes pra
poder inundar na região da serra dos Três Irmãos na beira do Madeira e que na
região de Tabajara o governo já diminuiu o Parque Campos Amazônicos para que a
Usina de Tabajara seja construída e inunde parte dessa região, onde também tem
indígenas sem contato”. Isso quer dizer peixarada, que nóis temos que juntar
mais peixe nesta caldeirada de resistência e vamos fazer um banzeiro antes que
seja tarde.
O Mandi, com seu
esporão pontiagudo pede licença pra usar a palavra:
-Eu estou escutando
vocês e estou muito preocupado. Meu povo que vive nas beiras dos barrancos
desses rios estamos sofrendo uma perseguição muito grande. Antes quando tinha
maior quantidade e diversidade de peixes, os tais humanos tinham esquecido de
nós e poucos se interessavam pelo nosso corpo em seus pratos, mas agora, nos
tratam até com discriminação enquanto nos comem: “ixi, só tem mandi; mandi di
novo; não tem outra coisa; o jeito é comer mandi”... Isso está nos ofendendo,
porque além de alimentar esses buchudos do beiradão, ainda sofremos tal do buli
e todo dia estão lá no barranco nos pescando só porque gostamos de comer barro
nas plantas e outras cositas más que jogam no rio... comemos o que tem, já que
nossa vida não tá fácil não pra se alimentar! Pra sobreviver temos que esporar
os desavisados pra tentar escapar de suas mãos e evitar de ir pra panelas
desses humanos.
O Peixe cachorro fica
esperando o Mandi terminar e já emenda:
-Já a minha parentada,
que antes era pouca visada pelos pescadores, agora não escapa um; todos vão pra
panelas deles, pra grelha onde nos assam e se deliciam mesmo reclamando que
temos bastante espinho, coisa e tal... não tem jeito, eles não nos deixam em
paz... todo dia tem pescador nos lagos, igarapés e igapós com linhadas, caniços
e malhadeiras, mesmo no período da piracema, quando dizem que é proibido nos
pescar, mas nada, eles não respeitam e nem pensam nos seus filhos e netos... quero
ver como vai ser pra essas pessoas quando nós resolvermos fugir pra longe
deles, se é que exista algum lugar onde possamos ir e viver livres deste medo
de todo dia.
O Tucunaré-açu, idoso,
que de longe escutava a conversa chega bem perto e pede a palavra:
-Óia meus
parentezinhos, eu que já vivi muita coisa, já escapei de tantas armadilhas da
vida, posso dizer que tá cada vez mais perigoso pra nós viver nestes rios da
Amazonia. Por um lado tem as tais pescarias de pegue-e-solte, que traz os ricos
de vários países para nos pescar, rasgar nossa boca, tirar fotos e nos soltar
machucados, como se fôssemos descartáveis, como se não sentíssemos dor. Aí
quando menos se espera lá colocam barreira de cimento em nosso caminho e não
podemos mais subir com nossas fêmeas para lugares seguros pra desova. Eu vi lá
em Santo Antonio do Madeira, onde fizeram tal da barragem, que deixaram um
canal pra subida dos peixes, mas aquilo é um crime, a gente tenta subir e cansa
e volta se batendo, se cortando, se machucando e não consegue. Antes não,
quando não tinha barragem nós tínhamos o caminho entre as pedras por onde
nadávamos, parávamos, descansávamos e seguíamos nossa migração. Agora isso não
ocorre mais. Ficamos prisioneiros no rio e tivemos que buscar saídas pra
reprodução nos lagos menores e todos cercados por humanos que não deixam nossos
filhotes crescerem e já os pegam e com isso estamos diminuindo e vamos
desaparecer... Todos os humanos falam que caldeirada boa é de Tucunaré, mas
ninguém quer ficar sem comer pra deixar a gente se reproduzir...isso é um crime
contra nosso direito de ser peixe e direito de reprodução pra alimentar eles
próprios...Isso me deixa muito indignado!
O Surubim, peixe liso,
também conhecido por Cachara vem lisamente entrando na conversa:
-Meu povo gosta mesmo é
de viver nos lagos, livres e em águas calmas. Mas isso já não é mais possível
nestes tempos. As águas estão agitadas, pesadas, barrentas. Parece que quem
manda na vida do rio agora são os tais humanos, porque mesmo sem chuva as águas
sobem e baixam de repente. Não é mais as forças da natureza que conduz nossa
vida, mas sim os humanos. Diante disso, nossa vida tá confusa, porque as frutas
não temos mais desde a grande inundação de 2014, quando a maioria morreu.
Depois veio as queimadas que chegaram matando a vida até na beira dos rios.
Agora pra completar querem estes tais humanos construir mais uma barragem no
nosso rio Machado ¿ Onde isso vai parar e nossos direitos como peixes que tem
vida, que alimenta os tais humanos, ou será que não nos consideram seres vivos¿
será que eles não sabem que nós fazemos parte da mesma cadeia alimentar da qual
eles também fazem parte, ou seja, nossos direitos de existir é o que sustenta o
direito deles, ou estou errado¿ Eu penso que devemos convidar mais peixes pra
nossa reunião e fazer um Manifesto de nossos direitos.
Dona Branquinha que
coordenava a reunião concordou e pediu a sua filha que fosse chamar dona
Pirarara, considerada a maior do rio Madeira em tamanho e única que coloca medo
nos pescadores.
Dona Pirarara chega com
toda sua opulência, entra na roda e como já foi informada do assunto pela filha
de dona Branquinha foi se expressando:
-Eu agradeço por terem
me chamado, porque também estou preocupada com minha família com esta situação.
Os pescadores antes dessas barragens no rio Madeira, só pescavam meus parentes
acima de um metro de cumprimento, mas agora, com a dizimação que promoveram
contra nossa comunidade, estão pegando e levando pra suas casas qualquer
tamanho. Esta semana mesmo meu filhote menor de cinquenta centímetros foi
fisgado e levado, antes mesmo da liberação do período da piracema. Nós não
temos mais paz e muito menos respeito com nosso direito à reprodução,
crescimento e vivencia. Ainda querem construir mais hidrelétrica no rio
Machado¿ Isso é crime contra nossa vida e dos indígenas que vivem nesta região,
pois tem os Tenharim, Diahoy, Arara, Gavião e os indígenas sem contatos que
também tem direito ao rio livre e pelo que sei, se fazerem barragem em Tabajara
vão alagar parte da terra onde vive estes isolados... até escutei os Kawahiwa
falando que eles tem direito de serem consultados diante desta ameaça e ai me
perguntei e NÓS não vão nos consultar também¿ Não vão consultar a floresta que
vai ser exterminada, alagada¿ Será que nossa vida tem menos valor que a das
pessoas¿ Elas não depende de nós e da floresta pra se alimentar¿ Como querem
nos destruir sem respeitar nossos direitos¿ Não, isso não tá certo, temos que
construir nosso Manifesto é agora. Quem vai anotar nossas ideias¿
Dona Branquinha, toda
organizada, colocou a cabeça pra fora e chamou dona Garça, que de pernas
compridas comia algumas algas ali perto e ao saber do assunto se coloca para
ajudar, mas muito sem saber o que fazer pergunta o que querem que ela faça, o
que de pronto dona Branquinha lhe orienta:
-Dona Garça precisamos
que escute nossas palavras e as leve até os homens que estão fazendo o projeto
da hidrelétrica de Tabajara lá em Brasília. Sabemos que é longe, mas pode ir
parando pra descansar, sem portanto perder cada palavra nossa. Dona Garça de
pronto levanta pra escutar cada palavra que toda Branquinha foi ditando com
base nas falas de cada um dos participantes deste Manifesto, que assim foi
criando corpo:
“Fica decretado que
nós, os peixes dos rios: Machado, Preto, Madeira, Mamoré, Guaporé, Aripuanã,
Marmelos, Teles Pires, Tapajós, Xingú, Abunã, Madre Dioz, Beni e entre outros, somos portadores de direitos.
Temos direito à Vida
para manter a vida de vocês, pois se alimentam de nossos corpos. Mas, para que
nossos corpos alimentem a vida de vocês, precisamos primeiro ter condições de nos alimentar, crescer e reproduzir com segurança. Do contrário tanto nós como
vocês perderemos.
Sabemos que fazemos
parte da cadeia alimentar da qual vocês humanos também fazem parte. Entretanto,
assim como vocês, nós temos direito a viver nosso tempo de vida necessário para
garantir nossas atuais e futuras gerações.
Fica decretado que
nenhum peixe é menor em tamanho ou valor que o outro. Todos temos importância
por igual. Abaixo toda forma de depreciação, seja por tamanho ou
característica, pois lhes servimos na hora e na situação em que se encontram.
Dessa forma, todos temos valor por igual.
Fica decretado que
nossos rios tem que viver livres de barragens para que a vida possa ser plena. Cada rio barrado é causador de morte não por vontade própria, mas, pelas
consequências das más intervenções. Nenhuma barragem mais em rios da Amazônia,
Sim a Vida!
Fica decretado que
nossos corpos são portadores de experiências e vivencias seculares nesses rios
da Amazônia. Temos histórias próprias de cada espécie e modos de vida
específicas, que por isso, só com rios vivos poderemos viver nossas
especificidades.
Fica decretado que as
águas que nos alimentam e nos conduzem a vida "são águas sagradas".
Fica decretado que NÓS
os PEIXES, os RIOS e as FLORESTAS, aliadas aos povos e comunidades
tradicionais, somos imprescindíveis para o equilíbrio da vida no planeta Terra.
Fica decretado que a
Vida é o bem maior”
Ao concluir a narrativa
todos os peixes deram saltos, mergulhos e bateram as nadadeiras, quando ia
passando por ali o Boto Tucuxi, que ao se aproximar todos se juntaram com medo,
mas ele que havia escutado boa parte da narrativa, foi logo dizendo:
-Não tenham medo, eu
estou com vocês também nessa. Todos nós estamos sofrendo com as mazelas dos
tais humanos. Vamos somar nossos esforços para que não se construa mais nenhuma
barragem nos rios da Amazônia.
Novamente foi a maior
festa, fizeram nados sincronizados comemorando esta união dos peixes.
Dona Garça, que escutou
tudo e se emocionou com a narrativa e responsabilidade de levar a mensagem aos
humanos, pediu a palavra:
-Peço licença para
dirigir a palavra ao cardume, pois nunca me senti tão útil como agora. Vou
fazer de tudo para corresponder com a missão dada e farei de tudo para
cumpri-la. Ainda hoje começarei meu voo de mensageira. Vou passar por Porto
Velho, no Ministério Público Federal e na Eletronorte deixarei a mensagem de
vocês. De lá seguirei direto para Brasília, onde falarei para o Executivo,
Legislativo e Judiciário. Falarei também para os
ambientalistas, para os meios de comunicação social, para as comunidades
religiosas, acadêmicas, enfim, pra todo mundo, porque até agora eu só tinha
ouvido falar de “direitos humanos”, mas, é a primeira vez que escuto falar dos “direitos
da natureza”, a começar pelos peixes. Isso é fantástico e ao mesmo tempo
difícil de se fazer ouvir. Mas, eu uma simples Garça branca da Amazônia, da
boca do rio Preto com o rio Machado, desaguando no rio Madeira, iniciarei meu voo
em favor da vida não só de vocês, mas da minha também.
E assim partiu dona
Garça voando nesta missão possível, em defesa dos Direitos da Natureza!
Iremar Antonio Ferreira
– templo de reclusão – Porto Velho, 01 de abril de 2020.
4 comentários:
Que beleza, Iremar! Obrigado pelo lindo trabalho!
Muito bom... 👌🏼
Que maravilha, Iremar! Me emocionei além da conta...quanto sofrimento no decorrer da leitura mas imensa foi a alegria cheia de esperança... belíssimo texto e que Dona Garça possa retornar o quanto antes boas notícias.
A União faz a diferença.
Excelente mensagem. Como sabemos nossa Amazônia sendo barbaramente depredada e vilipenciada pelo capitalismo e pela ganância dessa gente que odeia o povo e nossa gente. E reflexo pelo envenenamento e mortes de animais reflete diretamente na população que sofre de abandono e nem da natureza pode mais tirar seu sustento. Situação difícil e lamentável. #ForaGenocidas
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