domingo, 19 de abril de 2020

PANDEMIA E O SACRILÉGIO DO SAGRADO


PANDEMIA E O SACRILÉGIO DO SAGRADO

Quando não se pode sepultar os mortos é como não fechar um ciclo. Como encarar a pandemia e o não direito ao ritual de passagem?

Hoje me despertou um sentimento, que alimento desde a partida inesperada de meu jovem irmão Liomar Garcia Ferreira para a outra dimensão, em 2006, vítima de um acidente de trabalho na cidade de Juína, MT.
Eu desde 1988 sai de casa, antes de completar os meus 18 anos, em busca de estudos e formação religiosa, indo para o Seminário Menor Maria Mãe dos Migrantes em Ariquemes, RO. Voltava duas vezes por ano para partilhar de momentos riquíssimos com meus familiares. A música, o grupo de jovens, as celebrações na comunidade, a romaria da terra, encontro de catequistas e o violão sempre animando estas vivências.
Depois desta fase, à partir de 1992 fui compor a equipe do Conselho Indigenista Missionário – CIMI-RO e como agente de saúde passei a conviver com vários povos indígenas, tanto de RO como do noroeste do MT. Um momento marcante, um tempo de muita resistência junto com os Arara de Aripuanã foi a reconquista de seu território em 1993. Neste interim tive a gratidão de conhecer outros povos: Oro Wari, Uru Eu Wau Wau (do Jamari), Amondawa, Arara de Ji-Paraná, Zoró, Parintintin, Tenharim, Diahoy (sul do AM), Cassupá, Salamãi, Karitiana, Karipuna, com os quais aprendi muito, principalmente o sentido de comunidade. Foi neste contexto que constitui família com minha companheira de caminhada Márcia com a qual tenho dois filhos: Lucas e Tanan, ambos afirmados e reconhecidos Mura pelo povo Mura do Itaparanã, sul do AM.
Fiz este breve contexto de minha vida para dar a dimensão de minha caminhada entre vários povos. A primeira experiência na dimensão comunitária que tive foi junto aos Jupaú (Uru Eu Wau Wau) em 1992. Ali aprendi o sentido do evangelho na prática, onde a partilha do bem comum se fazia no dia-a-dia e não como na cultura das “igrejas” em geral, que fica no campo da palavra, da pregação e do ensinar o outro a fazer o que diz a palavra, quando na prática muito pouco ou quase nada se faz. Ali não, ali acontecia “a partilha” dos bens comuns: do peixe, da caça, dos produtos da floresta, extraídos ou cultivados de forma singela. Foi esta vivência que me levou a escrever minha monografia em História (1997), “Os que tocam Taboca”.
Já a experiência na dimensão espiritual que mais me toca até hoje junto aos povos indígenas foi o ocorrido em 2014 com o povo Tenharim, cujo território é cortado pela Transamazônica, rodovia que trouxe o sarampo, a catapora, a varicela, a varíola, a gripe, a morte e quase dizimação deste povo. Mas, eles resistiram e novamente enfrentaram a ofensiva das forças do capital, de olho em seu território, nos recursos madeireiros e minerais, terras de interesse da expansão do agronegócio, motivos que gerou “o conflito”, como os Tenharim definem este momento.
O resultado deste “conflito” foi a prisão de cinco das principais lideranças deste povo. Parece que foi escolhido estrategicamente pelos que os aprisionaram.  territ de comunidade.
Prenderam o cacique jovem que seria empossado no lugar de seu pai, que dois meses antes havia sido vítima de um acidente com sinais de assassinato; o irmão do cacique; um agente de saúde que nem na aldeia estava quando do ocorrido; um primo dos dois irmãos e o “dono da festa”, da Botawa daquele ano, festa esta que é considerada o grande momento de encontro deste povo e seus clãs Tarawé e Mutum Nanguera, para agradecer, dançar e para chorar os que partiram ao longo deste período de uma festa para outra. E foi justamente esse processo de vivência deste povo que foi “desestruturado”. Não encontraria aqui palavra para definir este momento, por isso utilizarei esta palavra desestruturada para melhor interpretar o que com palavras fica difícil distinguir. “Partir (morrer) um parente sem fazer o ritual completo é como deixar ele vagando entre a dimensão terrestre e a dimensão espiritual; como que foi e não foi, ...isso abre espaço para entrada de doenças, conflitos, acidentes, tudo o que é de ruim”, define dona Margarida T. (2014).
Para esta interpretação estou olhando para o meu sentimento quando partiu meu irmão. Eu estava em trabalho na Bahia e não tive como voltar a Porto Velho para daqui sair com minha mãe, que aqui se encontrava em tratamento, pro ritual de sepultamento. Ou seja, nem eu e nem ela tivemos como nos despedir no ritual fúnebre. Ficou uma dor no fundo do peito. Ficou um adeus não dado, uma despedida não realizada, um desprender não completado. Por isso, toda vez que vou a Juína é como se ele estivesse em algum lugar, em sua casa, aguardando uma visita. E quase sempre vou até o cemitério fazer esta visita, na tentativa de suprir este vazio.
Daí me pego a dimensionar este sentimento dos que estão perdendo os seus para a pandemia de COVID 19 pelo mundo, em cada cultura diferente, sem ter como realizar a despedida, tendo que aceitar a decisão das autoridades sanitaristas que dizem que não se pode ter qualquer tipo de contato, de despedida. A dor da partida é grande para nós que vivemos nas cidades e constantemente lidamos com a morte de pessoas de nosso bairro, de nossa rua, de nossa comunidade. Agora fico a imaginar o que significa para os povos indígenas, cada um com seu ritual de passagem, ao se deparar com esta situação em que não podem sequer levar o corpo para seu território, para sua maloca, para chorar o que partiu.
Bruce Albert, antropólogo francês, que conheci em 1999 e que a mais de duas décadas atua junto aos Yanomami, em artigo no site Amazonia Real (15\04\20), comunga de minhas preocupações e afirma:
“Sepultar vítima Yanomami sem o consentimento de seus familiares demostra uma grave falta de ética e uma total ausência de empatia das autoridades sanitárias com o desamparo deste povo face à pandemia de Covid-19. Além do mais, dispor de um defunto sem rituais funerários tradicionais constitui, para os Yanomami, como para qualquer outro povo, um ato inumano e, portanto, infame.
De acordo com os costumes Yanomami, os defuntos devem ser cremados e chorados coletivamente por suas comunidades e as cinzas dos seus ossos conservadas para serem sepultadas ao longo de várias festas coletivas de aliança (reahu). O proposito destes rituais é “colocar no olvido” as cinzas do morto, o que deve garantir a viagem sem retorno de sua alma (pore) até as “costas do céu” onde viverá uma nova vida sem mal.”
Poderá algum dia a medicina eurocêntrica entender a dimensão espiritual que se tem da morte nas culturas que fogem às categorizações já estabelecidas pelas ciências naturais ou biológicas?
“Na falta deste tratamento ritual das cinzas funerárias, considera-se que as almas dos mortos voltarão sempre para chamar os vivos durante seus sonhos, causando-lhes uma nostalgia e uma melancolia sem fim. Poder conduzir o luto do seus mortos de maneira culturalmente apropriada é, portanto, tanto na sociedade Yanomami quanto na nossa, um direito humano básico. Sem o respeito deste direito fundamental, os familiares das vítimas Yanomami da Covid-19, além de terem perdido os seus entes queridos, deverão sofrer para sempre, como uma segunda morte em vida, o luto inextinguível da sua ausência.
Neste contexto, um diálogo deve ser urgentemente aberto para tratar desta delicada questão entre os representantes do povo Yanomami e as autoridades sanitárias. a fim de estudar uma solução aceitável, tanto do ponto de vista dos critérios de biossegurança quanto do ponto de vista do respeito dos costumes religiosos Yanomami.”
As autoridades de saúde junto às autoridades jurídicas e sociológicas, de maneira geral nas ciências humanas, devem pensar formas de garantir o direito coletivo e individual destas especificidades, sem aguardar que elas o peçam judicialmente. Já deveríamos partir do princípio do direito já adquirido para a busca de solução para estes novos desafios.
“Reler A queda do Céu, pp. 267-68, onde Davi Kopenawa conta como sua mãe morreu numa epidemia de sarampo trazida pelos missionários da Novas Tribos do Brasil (aliás, Ethnos360) e como estes sepultaram o cadáver a revelia num lugar até hoje desconhecido: Por causa deles, nunca pude chorar a minha mãe como faziam nossos antigos. Isso é uma coisa muito ruim. Causou-me um sofrimento muito profundo, e a raiva desta morte fica em mim desde então. Foi endurecendo com o tempo, e só terá fim quando eu mesmo acabar".
Considerando o marco dos direitos humanos, em cuja matéria envolve o direito à espiritualidade, à religiosidade, liberdade de culto, especificidade cultural, a ritualística de cada povo, cultura (Constituição Federal Art. 231), como garantir às famílias esses Direitos, que violados poderão trazer consequências pessoais, coletivas, psicológicas, identitárias entre outros. Como dialogar com povos em processos culturais diferentes, alguns destes com suas malocas em cima de território antes cemitérios. Esse novo tempo requer novos olhares.
Podem as autoridades de saúde dizer que agiram para não ameaçar a integridade física dos Yanomami, diante da causa mortis (Coronavírus). Mas, quem garante que a “morte espiritual” pela ruptura do ritual, não irá causar outros tipos de mortes neste povo?  
Eu, formado no catolicismo até hoje não consegui fazer a passagem de meu irmão. Imagino o quão é difícil para esta diversidade de povos e culturas, que já enfrentaram outras doenças que provocaram dizimação de comunidades inteiras seja por: malária, gripe, tuberculose, varíola, varicela e muitos povos sem saber do grau de contaminação, praticavam seus rituais de passagem fúnebre. Entretanto, historicamente para alguns povos, contactados pelo Serviço de Proteção ao Índio- SPI (1912-1968), mediante contágios de doenças, seus parentes eram jogados ainda vivos em valas, o que provocou o desaparecimento de muitos povos. Alguns povos tiveram seus cemitérios maiores que suas aldeias e outros para escapar da dizimação fugiram do contato e fizeram seus isolamentos próprios garantiram sua existência até hoje, os que chamamos de “indígenas em condição de isolamento e risco”.
A questão posta é que, como agora diante de uma nova doença (pandemia) de COVID 19, que já não afeta só os indígenas, mas, nações e pessoas de todo o planeta, sejam ricos ou pobres (os mais pobres em sua maioria), já que alguns povos se veem proibidos de vivenciar seu processo cultural à luz da imposição dos que estão provocando as epidemias, como abrir um diálogo humanizante da condição de morte e da passagem para o mundo espiritual entre indígenas e não indígenas?
No mínimo este momento exige mudanças radicais. Talvez a principal dela seja a percepção de que os causadores das epidemias são os que estão promovendo a destruição da Casa Comum e que os povos resilientes destes 520 anos de massacres, são etnodiversos, portadores de sabedorias, de rituais, de espiritualidades, que os move em sua plenitude e no mínimo devemos respeitar e aprender com estes frente ao novo momento (inclusive de como fazer o ritual de passagem fúnebre), que exige de Nós, novas posturas diante da Mãe Terra e de seus filhos e filhas.

Iremar A. Ferreira (16\04\20)



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