PANDEMIA E O SACRILÉGIO DO SAGRADO
Quando não se pode sepultar os
mortos é como não fechar um ciclo. Como encarar a pandemia e o não direito ao
ritual de passagem?
Hoje me despertou um sentimento,
que alimento desde a partida inesperada de meu jovem irmão Liomar Garcia
Ferreira para a outra dimensão, em 2006, vítima de um acidente de trabalho na
cidade de Juína, MT.
Eu desde 1988 sai de casa, antes
de completar os meus 18 anos, em busca de estudos e formação religiosa, indo
para o Seminário Menor Maria Mãe dos Migrantes em Ariquemes, RO. Voltava duas
vezes por ano para partilhar de momentos riquíssimos com meus familiares. A
música, o grupo de jovens, as celebrações na comunidade, a romaria da terra,
encontro de catequistas e o violão sempre animando estas vivências.
Depois desta fase, à partir de
1992 fui compor a equipe do Conselho Indigenista Missionário – CIMI-RO e como
agente de saúde passei a conviver com vários povos indígenas, tanto de RO como
do noroeste do MT. Um momento marcante, um tempo de muita resistência junto com
os Arara de Aripuanã foi a reconquista de seu território em 1993. Neste interim
tive a gratidão de conhecer outros povos: Oro Wari, Uru Eu Wau Wau (do Jamari),
Amondawa, Arara de Ji-Paraná, Zoró, Parintintin, Tenharim, Diahoy (sul do AM),
Cassupá, Salamãi, Karitiana, Karipuna, com os quais aprendi muito,
principalmente o sentido de comunidade. Foi neste contexto que constitui
família com minha companheira de caminhada Márcia com a qual tenho dois filhos:
Lucas e Tanan, ambos afirmados e reconhecidos Mura pelo povo Mura do Itaparanã,
sul do AM.
Fiz este breve contexto de minha
vida para dar a dimensão de minha caminhada entre vários povos. A primeira
experiência na dimensão comunitária que tive foi junto aos Jupaú (Uru Eu Wau
Wau) em 1992. Ali aprendi o sentido do evangelho na prática, onde a partilha do
bem comum se fazia no dia-a-dia e não como na cultura das “igrejas” em geral,
que fica no campo da palavra, da pregação e do ensinar o outro a fazer o que
diz a palavra, quando na prática muito pouco ou quase nada se faz. Ali não, ali
acontecia “a partilha” dos bens comuns: do peixe, da caça, dos produtos da
floresta, extraídos ou cultivados de forma singela. Foi esta vivência que me
levou a escrever minha monografia em História (1997), “Os que tocam Taboca”.
Já a experiência na dimensão
espiritual que mais me toca até hoje junto aos povos indígenas foi o ocorrido
em 2014 com o povo Tenharim, cujo território é cortado pela Transamazônica,
rodovia que trouxe o sarampo, a catapora, a varicela, a varíola, a gripe, a
morte e quase dizimação deste povo. Mas, eles resistiram e novamente
enfrentaram a ofensiva das forças do capital, de olho em seu território, nos
recursos madeireiros e minerais, terras de interesse da expansão do
agronegócio, motivos que gerou “o conflito”, como os Tenharim definem este
momento.
O resultado deste “conflito” foi
a prisão de cinco das principais lideranças deste povo. Parece que foi
escolhido estrategicamente pelos que os aprisionaram.
Prenderam o cacique jovem que
seria empossado no lugar de seu pai, que dois meses antes havia sido vítima de
um acidente com sinais de assassinato; o irmão do cacique; um agente de saúde
que nem na aldeia estava quando do ocorrido; um primo dos dois irmãos e o “dono
da festa”, da Botawa daquele ano, festa esta que é considerada o grande momento
de encontro deste povo e seus clãs Tarawé e Mutum Nanguera, para agradecer, dançar
e para chorar os que partiram ao longo deste período de uma festa para outra. E
foi justamente esse processo de vivência deste povo que foi “desestruturado”.
Não encontraria aqui palavra para definir este momento, por isso utilizarei
esta palavra desestruturada para melhor interpretar o que com palavras
fica difícil distinguir. “Partir (morrer) um parente sem fazer o ritual
completo é como deixar ele vagando entre a dimensão terrestre e a dimensão
espiritual; como que foi e não foi, ...isso abre espaço para entrada de
doenças, conflitos, acidentes, tudo o que é de ruim”, define dona Margarida T.
(2014).
Para esta interpretação estou
olhando para o meu sentimento quando partiu meu irmão. Eu estava em trabalho na
Bahia e não tive como voltar a Porto Velho para daqui sair com minha mãe, que
aqui se encontrava em tratamento, pro ritual de sepultamento. Ou seja, nem eu e
nem ela tivemos como nos despedir no ritual fúnebre. Ficou uma dor no fundo do
peito. Ficou um adeus não dado, uma despedida não realizada, um desprender não
completado. Por isso, toda vez que vou a Juína é como se ele estivesse em algum
lugar, em sua casa, aguardando uma visita. E quase sempre vou até o cemitério
fazer esta visita, na tentativa de suprir este vazio.
Daí me pego a dimensionar este
sentimento dos que estão perdendo os seus para a pandemia de COVID 19 pelo
mundo, em cada cultura diferente, sem ter como realizar a despedida, tendo que
aceitar a decisão das autoridades sanitaristas que dizem que não se pode ter
qualquer tipo de contato, de despedida. A dor da partida é grande para nós que
vivemos nas cidades e constantemente lidamos com a morte de pessoas de nosso
bairro, de nossa rua, de nossa comunidade. Agora fico a imaginar o que
significa para os povos indígenas, cada um com seu ritual de passagem, ao se
deparar com esta situação em que não podem sequer levar o corpo para seu
território, para sua maloca, para chorar o que partiu.
Bruce Albert, antropólogo francês,
que conheci em 1999 e que a mais de duas décadas atua junto aos Yanomami, em
artigo no site Amazonia Real (15\04\20), comunga de minhas preocupações e
afirma:
“Sepultar vítima Yanomami sem o
consentimento de seus familiares demostra uma grave falta de ética e uma total
ausência de empatia das autoridades sanitárias com o desamparo deste povo face
à pandemia de Covid-19. Além do mais, dispor de um defunto sem rituais
funerários tradicionais constitui, para os Yanomami, como para qualquer outro
povo, um ato inumano e, portanto, infame.
De acordo com os costumes Yanomami, os
defuntos devem ser cremados e chorados coletivamente por suas comunidades e as
cinzas dos seus ossos conservadas para serem sepultadas ao longo de várias
festas coletivas de aliança (reahu). O proposito destes rituais é “colocar no
olvido” as cinzas do morto, o que deve garantir a viagem sem retorno de sua
alma (pore) até as “costas do céu” onde viverá uma nova vida sem mal.”
Poderá algum dia a medicina
eurocêntrica entender a dimensão espiritual que se tem da morte nas culturas
que fogem às categorizações já estabelecidas pelas ciências naturais ou
biológicas?
“Na falta deste tratamento ritual das cinzas
funerárias, considera-se que as almas dos mortos voltarão sempre para chamar os
vivos durante seus sonhos, causando-lhes uma nostalgia e uma melancolia sem
fim. Poder conduzir o luto do seus mortos de maneira culturalmente apropriada
é, portanto, tanto na sociedade Yanomami quanto na nossa, um direito humano
básico. Sem o respeito deste direito fundamental, os familiares das vítimas
Yanomami da Covid-19, além de terem perdido os seus entes queridos, deverão
sofrer para sempre, como uma segunda morte em vida, o luto inextinguível da sua
ausência.
Neste contexto, um diálogo deve ser
urgentemente aberto para tratar desta delicada questão entre os representantes
do povo Yanomami e as autoridades sanitárias. a fim de estudar uma solução
aceitável, tanto do ponto de vista dos critérios de biossegurança quanto do
ponto de vista do respeito dos costumes religiosos Yanomami.”
As autoridades
de saúde junto às autoridades jurídicas e sociológicas, de maneira geral nas
ciências humanas, devem pensar formas de garantir o direito coletivo e
individual destas especificidades, sem aguardar que elas o peçam judicialmente.
Já deveríamos partir do princípio do direito já adquirido para a busca de
solução para estes novos desafios.
“Reler A queda do Céu, pp. 267-68, onde Davi
Kopenawa conta como sua mãe morreu numa epidemia de sarampo trazida pelos
missionários da Novas Tribos do Brasil (aliás, Ethnos360) e como estes
sepultaram o cadáver a revelia num lugar até hoje desconhecido: Por causa
deles, nunca pude chorar a minha mãe como faziam nossos antigos. Isso é uma
coisa muito ruim. Causou-me um sofrimento muito profundo, e a raiva desta morte
fica em mim desde então. Foi endurecendo com o tempo, e só terá fim quando eu
mesmo acabar".
Considerando o marco dos direitos
humanos, em cuja matéria envolve o direito à espiritualidade, à religiosidade,
liberdade de culto, especificidade cultural, a ritualística de cada povo,
cultura (Constituição Federal Art. 231), como garantir às famílias esses
Direitos, que violados poderão trazer consequências pessoais, coletivas,
psicológicas, identitárias entre outros. Como dialogar com povos em processos
culturais diferentes, alguns destes com suas malocas em cima de território
antes cemitérios. Esse novo tempo requer novos olhares.
Podem as autoridades de saúde dizer
que agiram para não ameaçar a integridade física dos Yanomami, diante da causa
mortis (Coronavírus). Mas, quem garante que a “morte espiritual” pela ruptura
do ritual, não irá causar outros tipos de mortes neste povo?
Eu, formado no catolicismo até hoje
não consegui fazer a passagem de meu irmão. Imagino o quão é difícil para esta
diversidade de povos e culturas, que já enfrentaram outras doenças que
provocaram dizimação de comunidades inteiras seja por: malária, gripe,
tuberculose, varíola, varicela e muitos povos sem saber do grau de
contaminação, praticavam seus rituais de passagem fúnebre. Entretanto,
historicamente para alguns povos, contactados pelo Serviço de Proteção ao
Índio- SPI (1912-1968), mediante contágios de doenças, seus parentes eram jogados
ainda vivos em valas, o que provocou o desaparecimento de muitos povos. Alguns
povos tiveram seus cemitérios maiores que suas aldeias e outros para escapar da
dizimação fugiram do contato e fizeram seus isolamentos próprios garantiram sua
existência até hoje, os que chamamos de “indígenas em condição de isolamento e
risco”.
A questão posta é que, como agora
diante de uma nova doença (pandemia) de COVID 19, que já não afeta só os
indígenas, mas, nações e pessoas de todo o planeta, sejam ricos ou pobres (os
mais pobres em sua maioria), já que alguns povos se veem proibidos de vivenciar
seu processo cultural à luz da imposição dos que estão provocando as epidemias,
como abrir um diálogo humanizante da condição de morte e da passagem para o
mundo espiritual entre indígenas e não indígenas?
No mínimo este momento exige
mudanças radicais. Talvez a principal dela seja a percepção de que os
causadores das epidemias são os que estão promovendo a destruição da Casa Comum
e que os povos resilientes destes 520 anos de massacres, são etnodiversos,
portadores de sabedorias, de rituais, de espiritualidades, que os move em sua
plenitude e no mínimo devemos respeitar e aprender com estes frente ao novo
momento (inclusive de como fazer o ritual de passagem fúnebre), que exige de Nós,
novas posturas diante da Mãe Terra e de seus filhos e filhas.
Iremar A. Ferreira (16\04\20)
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