quarta-feira, 22 de abril de 2020

22 DE ABRIL - DIA INTERNACIONAL DA MÃE TERRA

https://fmclimaticas.org.br/carta-publica-pela-defesa-dos-direitos-da-mae-terra-e-pela-vida-da-amazonia-com-seus-povos/?fbclid=IwAR2Xnp2ABprD7DxEiukHKcuXCnA6AUuiXPXoEMSRuxmpcQlb5iugjSW-fgU

NÚCLEO DO FÓRUM MUDANÇAS CLIMÁTICAS E JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL DE RO DENUNCIA MORTE DE INDÍGENA



NOTA DE PROTESTO E SOLIDARIEDADE

A MÃE TERRA CHORA O ASSASSINATO DE MAIS UM FILHO

Hoje é dia 22 de Abril de 2020, dia Internacional da Mãe Terra, conforme instituiu a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas -ONU em 2009, após muita pressão de povos e organizações sociais, entendendo que a Terra é provedora de Vida e portanto, MÃE.
Infelizmente esta Mãe chora o assassinato de mais um filho seu: Ari Uru Eu Wau Wau, ocorrido entre os dia 17 e 18 de Abril, no município de Tarilândia, interior do Estado de Rondônia, conforme denúncia feita pela Associação Etnoambiental Kanindé.
Os povos habitantes da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau sofrem ameaças e violências desde há muito tempo, como acontece também com muitos outros povos indígenas e comunidades tradicionais. Essa é a política que muitos governos têm para eles: Invasão, roubo, aculturação e genocídio. Na década de 80  o Povo Uru Eu Wau Wau conquistou a demarcação de sua Terra Indígena, após muita pressão nacional e internacional, mas nem isso diminuiu a pressão sobre eles. Ameaças de morte a lideranças Uru Eu Wau Wau, Karipuna entre outros povos em Rondônia não é novidade. Mas, a concretização deste assassinato, em pleno governo Bolsonaro é uma clara mensagem de que as Leis deste País, que deveriam proteger a Vida estão sendo violadas com “sentimento de apoio governamental”.
Este crime bárbaro não pode ficar impune. Os órgãos de Justiça e as instituições que ainda respeitam a Constituição Federal e as leis brasileiras precisam dar uma resposta à sociedade, ao povo Uru Eu Wau Wau e aos que defendem o direito à Vida acima de qualquer interesse particular.
Por isso, nós do Comitê de Defesa da Vida Amazônia na Bacia do Rio Madeira: contra as Mudanças Climáticas e por Justiça Socioambiental, Núcleo Rondônia do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental, DENUNCIAMOS que é urgente e necessário que seja dado um basta nesta violência. Os órgãos responsáveis pela proteção à Vida dos Povos Indígenas que não cumprirem com suas obrigações legais, poderão ser levados aos Tribunais Internacionais por conivência com os crimes de genocídio, etnocídio e ecocídio.
Em solidariedade aos familiares do professor Ari Uru Eu Wau Wau declaramos “nenhuma gota de sangue indígena a mais em território brasileiro e de modo especial na Amazônia”.
Juntos pela Vida da Pachamama, da Mãe Terra e dos filhos e filhas da Terra.

Porto Velho RO, 22 de Abril de 2020.

COMITÊ DE DEFESA DA VIDA AMAZÔNICA NA BACIA DO RIO MADEIRA: CONTRA AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E POR JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL

domingo, 19 de abril de 2020

PANDEMIA E O SACRILÉGIO DO SAGRADO


PANDEMIA E O SACRILÉGIO DO SAGRADO

Quando não se pode sepultar os mortos é como não fechar um ciclo. Como encarar a pandemia e o não direito ao ritual de passagem?

Hoje me despertou um sentimento, que alimento desde a partida inesperada de meu jovem irmão Liomar Garcia Ferreira para a outra dimensão, em 2006, vítima de um acidente de trabalho na cidade de Juína, MT.
Eu desde 1988 sai de casa, antes de completar os meus 18 anos, em busca de estudos e formação religiosa, indo para o Seminário Menor Maria Mãe dos Migrantes em Ariquemes, RO. Voltava duas vezes por ano para partilhar de momentos riquíssimos com meus familiares. A música, o grupo de jovens, as celebrações na comunidade, a romaria da terra, encontro de catequistas e o violão sempre animando estas vivências.
Depois desta fase, à partir de 1992 fui compor a equipe do Conselho Indigenista Missionário – CIMI-RO e como agente de saúde passei a conviver com vários povos indígenas, tanto de RO como do noroeste do MT. Um momento marcante, um tempo de muita resistência junto com os Arara de Aripuanã foi a reconquista de seu território em 1993. Neste interim tive a gratidão de conhecer outros povos: Oro Wari, Uru Eu Wau Wau (do Jamari), Amondawa, Arara de Ji-Paraná, Zoró, Parintintin, Tenharim, Diahoy (sul do AM), Cassupá, Salamãi, Karitiana, Karipuna, com os quais aprendi muito, principalmente o sentido de comunidade. Foi neste contexto que constitui família com minha companheira de caminhada Márcia com a qual tenho dois filhos: Lucas e Tanan, ambos afirmados e reconhecidos Mura pelo povo Mura do Itaparanã, sul do AM.
Fiz este breve contexto de minha vida para dar a dimensão de minha caminhada entre vários povos. A primeira experiência na dimensão comunitária que tive foi junto aos Jupaú (Uru Eu Wau Wau) em 1992. Ali aprendi o sentido do evangelho na prática, onde a partilha do bem comum se fazia no dia-a-dia e não como na cultura das “igrejas” em geral, que fica no campo da palavra, da pregação e do ensinar o outro a fazer o que diz a palavra, quando na prática muito pouco ou quase nada se faz. Ali não, ali acontecia “a partilha” dos bens comuns: do peixe, da caça, dos produtos da floresta, extraídos ou cultivados de forma singela. Foi esta vivência que me levou a escrever minha monografia em História (1997), “Os que tocam Taboca”.
Já a experiência na dimensão espiritual que mais me toca até hoje junto aos povos indígenas foi o ocorrido em 2014 com o povo Tenharim, cujo território é cortado pela Transamazônica, rodovia que trouxe o sarampo, a catapora, a varicela, a varíola, a gripe, a morte e quase dizimação deste povo. Mas, eles resistiram e novamente enfrentaram a ofensiva das forças do capital, de olho em seu território, nos recursos madeireiros e minerais, terras de interesse da expansão do agronegócio, motivos que gerou “o conflito”, como os Tenharim definem este momento.
O resultado deste “conflito” foi a prisão de cinco das principais lideranças deste povo. Parece que foi escolhido estrategicamente pelos que os aprisionaram.  territ de comunidade.
Prenderam o cacique jovem que seria empossado no lugar de seu pai, que dois meses antes havia sido vítima de um acidente com sinais de assassinato; o irmão do cacique; um agente de saúde que nem na aldeia estava quando do ocorrido; um primo dos dois irmãos e o “dono da festa”, da Botawa daquele ano, festa esta que é considerada o grande momento de encontro deste povo e seus clãs Tarawé e Mutum Nanguera, para agradecer, dançar e para chorar os que partiram ao longo deste período de uma festa para outra. E foi justamente esse processo de vivência deste povo que foi “desestruturado”. Não encontraria aqui palavra para definir este momento, por isso utilizarei esta palavra desestruturada para melhor interpretar o que com palavras fica difícil distinguir. “Partir (morrer) um parente sem fazer o ritual completo é como deixar ele vagando entre a dimensão terrestre e a dimensão espiritual; como que foi e não foi, ...isso abre espaço para entrada de doenças, conflitos, acidentes, tudo o que é de ruim”, define dona Margarida T. (2014).
Para esta interpretação estou olhando para o meu sentimento quando partiu meu irmão. Eu estava em trabalho na Bahia e não tive como voltar a Porto Velho para daqui sair com minha mãe, que aqui se encontrava em tratamento, pro ritual de sepultamento. Ou seja, nem eu e nem ela tivemos como nos despedir no ritual fúnebre. Ficou uma dor no fundo do peito. Ficou um adeus não dado, uma despedida não realizada, um desprender não completado. Por isso, toda vez que vou a Juína é como se ele estivesse em algum lugar, em sua casa, aguardando uma visita. E quase sempre vou até o cemitério fazer esta visita, na tentativa de suprir este vazio.
Daí me pego a dimensionar este sentimento dos que estão perdendo os seus para a pandemia de COVID 19 pelo mundo, em cada cultura diferente, sem ter como realizar a despedida, tendo que aceitar a decisão das autoridades sanitaristas que dizem que não se pode ter qualquer tipo de contato, de despedida. A dor da partida é grande para nós que vivemos nas cidades e constantemente lidamos com a morte de pessoas de nosso bairro, de nossa rua, de nossa comunidade. Agora fico a imaginar o que significa para os povos indígenas, cada um com seu ritual de passagem, ao se deparar com esta situação em que não podem sequer levar o corpo para seu território, para sua maloca, para chorar o que partiu.
Bruce Albert, antropólogo francês, que conheci em 1999 e que a mais de duas décadas atua junto aos Yanomami, em artigo no site Amazonia Real (15\04\20), comunga de minhas preocupações e afirma:
“Sepultar vítima Yanomami sem o consentimento de seus familiares demostra uma grave falta de ética e uma total ausência de empatia das autoridades sanitárias com o desamparo deste povo face à pandemia de Covid-19. Além do mais, dispor de um defunto sem rituais funerários tradicionais constitui, para os Yanomami, como para qualquer outro povo, um ato inumano e, portanto, infame.
De acordo com os costumes Yanomami, os defuntos devem ser cremados e chorados coletivamente por suas comunidades e as cinzas dos seus ossos conservadas para serem sepultadas ao longo de várias festas coletivas de aliança (reahu). O proposito destes rituais é “colocar no olvido” as cinzas do morto, o que deve garantir a viagem sem retorno de sua alma (pore) até as “costas do céu” onde viverá uma nova vida sem mal.”
Poderá algum dia a medicina eurocêntrica entender a dimensão espiritual que se tem da morte nas culturas que fogem às categorizações já estabelecidas pelas ciências naturais ou biológicas?
“Na falta deste tratamento ritual das cinzas funerárias, considera-se que as almas dos mortos voltarão sempre para chamar os vivos durante seus sonhos, causando-lhes uma nostalgia e uma melancolia sem fim. Poder conduzir o luto do seus mortos de maneira culturalmente apropriada é, portanto, tanto na sociedade Yanomami quanto na nossa, um direito humano básico. Sem o respeito deste direito fundamental, os familiares das vítimas Yanomami da Covid-19, além de terem perdido os seus entes queridos, deverão sofrer para sempre, como uma segunda morte em vida, o luto inextinguível da sua ausência.
Neste contexto, um diálogo deve ser urgentemente aberto para tratar desta delicada questão entre os representantes do povo Yanomami e as autoridades sanitárias. a fim de estudar uma solução aceitável, tanto do ponto de vista dos critérios de biossegurança quanto do ponto de vista do respeito dos costumes religiosos Yanomami.”
As autoridades de saúde junto às autoridades jurídicas e sociológicas, de maneira geral nas ciências humanas, devem pensar formas de garantir o direito coletivo e individual destas especificidades, sem aguardar que elas o peçam judicialmente. Já deveríamos partir do princípio do direito já adquirido para a busca de solução para estes novos desafios.
“Reler A queda do Céu, pp. 267-68, onde Davi Kopenawa conta como sua mãe morreu numa epidemia de sarampo trazida pelos missionários da Novas Tribos do Brasil (aliás, Ethnos360) e como estes sepultaram o cadáver a revelia num lugar até hoje desconhecido: Por causa deles, nunca pude chorar a minha mãe como faziam nossos antigos. Isso é uma coisa muito ruim. Causou-me um sofrimento muito profundo, e a raiva desta morte fica em mim desde então. Foi endurecendo com o tempo, e só terá fim quando eu mesmo acabar".
Considerando o marco dos direitos humanos, em cuja matéria envolve o direito à espiritualidade, à religiosidade, liberdade de culto, especificidade cultural, a ritualística de cada povo, cultura (Constituição Federal Art. 231), como garantir às famílias esses Direitos, que violados poderão trazer consequências pessoais, coletivas, psicológicas, identitárias entre outros. Como dialogar com povos em processos culturais diferentes, alguns destes com suas malocas em cima de território antes cemitérios. Esse novo tempo requer novos olhares.
Podem as autoridades de saúde dizer que agiram para não ameaçar a integridade física dos Yanomami, diante da causa mortis (Coronavírus). Mas, quem garante que a “morte espiritual” pela ruptura do ritual, não irá causar outros tipos de mortes neste povo?  
Eu, formado no catolicismo até hoje não consegui fazer a passagem de meu irmão. Imagino o quão é difícil para esta diversidade de povos e culturas, que já enfrentaram outras doenças que provocaram dizimação de comunidades inteiras seja por: malária, gripe, tuberculose, varíola, varicela e muitos povos sem saber do grau de contaminação, praticavam seus rituais de passagem fúnebre. Entretanto, historicamente para alguns povos, contactados pelo Serviço de Proteção ao Índio- SPI (1912-1968), mediante contágios de doenças, seus parentes eram jogados ainda vivos em valas, o que provocou o desaparecimento de muitos povos. Alguns povos tiveram seus cemitérios maiores que suas aldeias e outros para escapar da dizimação fugiram do contato e fizeram seus isolamentos próprios garantiram sua existência até hoje, os que chamamos de “indígenas em condição de isolamento e risco”.
A questão posta é que, como agora diante de uma nova doença (pandemia) de COVID 19, que já não afeta só os indígenas, mas, nações e pessoas de todo o planeta, sejam ricos ou pobres (os mais pobres em sua maioria), já que alguns povos se veem proibidos de vivenciar seu processo cultural à luz da imposição dos que estão provocando as epidemias, como abrir um diálogo humanizante da condição de morte e da passagem para o mundo espiritual entre indígenas e não indígenas?
No mínimo este momento exige mudanças radicais. Talvez a principal dela seja a percepção de que os causadores das epidemias são os que estão promovendo a destruição da Casa Comum e que os povos resilientes destes 520 anos de massacres, são etnodiversos, portadores de sabedorias, de rituais, de espiritualidades, que os move em sua plenitude e no mínimo devemos respeitar e aprender com estes frente ao novo momento (inclusive de como fazer o ritual de passagem fúnebre), que exige de Nós, novas posturas diante da Mãe Terra e de seus filhos e filhas.

Iremar A. Ferreira (16\04\20)



quarta-feira, 1 de abril de 2020

MANIFESTO DOS PEIXES: #DIREITOSDANATUREZA


Reflexão em tempo de reclusão

OS PEIXES SENTEM!
MANIFESTO DOS PEIXES PELA VIDA !



Lá pras bandas da Amazônia, chegou um aviso pelas águas. 

A peixarada logo se deu conta de que dizia respeito a eles...

As águas estavam turvas, brancas como se diz no período da chuvarada, quando ela fica carregada de sedimentos, lama, diferente do verão, quando fica clara, com tom esverdeado ou preto...

Era sinal de que algo de errado estava acontecendo...

O cardume de branquinhas subindo lá pelas bandas de Calama logo avistou as alterações e procurou os tucunarés e demais peixes no lago do Acará pra conversar.

Dona Branquinha, cansada, que tinha acabado de chegar do rio Machado foi logo tomando a palavra:
-Tô vindo de muito longe, lá das cabeceiras do rio Machado. Passei por cidades grandes e pequenas, terras indígenas, áreas de preservação, reserva extrativista, assentamentos rurais, enfrentei cachoeiras e por isso cansei. Em viagem parei na região do tal Machadinho, onde já derrubaram quase todas as árvores, fizeram pastagens e tem muito boi, agora entrou a tal da soja e pouca gente nas moradias. A maioria das moradias estão vazias. Antes por lá tinha muita gente. Mas ouvi dizer que era pela tal da concentração fundiária. Vi grandes extensões de terra tombada. O que era de baixo veio pra cima e de cima foi pra baixo, tudo feito com grandes máquinas. Depois alisavam a terra com maquinas menores e outras maquinas diferentes jogavam sementes e daí nasceu a tal da soja. Parece um lago de calmaria, tudo verdinho... Cheguei a me assustar quando passou um pássaro gigante dando um banho de veneno na soja! Foi também nesta região que vi igarapés cheios de terra, sem vida, assoreados... Não tem mais peixe nestes igarapés, porque a chuva aplicada pelo pássaro na lavoura de soja, ao ser levado pelas águas das chuvas foram contaminando as águas e os peixes morrendo tudinho.

Dona Pacú-Açú que escutava pediu um aparte e perguntou:
-Dona Branquinha eu sei que a senhora é muito rápido na sua viagem, mas queria saber se a senhora passou por uma vila de pescadores chamada Tabajara¿

-Claro que sim dona Pacú-Açú e fiquei muito preocupada. Vi pescadores tristes. O lamento era um só “não temos mais peixe como antigamente, parece que tão sumindo, que o veneno está matando e ainda querem fazer a barragem aqui em Tabajara”... Ai eu fiquei preocupada com este desabafo do pescador e quis logo entender o que era essa tal de barragem. Então, me pus a escutar os pescadores mais velhos, que sentados na proa da canoa enquanto lançavam suas linhadas pra tentar pescar algum parente nosso diziam: “a barragem vem ai e vão tirar nóis daqui para dar lugar ao progresso. Isso aqui tudo vai virar um mar d´água. Vão fazer igual no rio Madeira. Vão colocar barreira de cimento no rio, trancar tudo lá pra cima, represar como eles falam, pra poder fazer hidrelétrica, para gerar energia elétrica pra alumiar o Brasil. Com isso, nóis temos que sair daqui pra ajudar o Brasil ter mais energia elétrica. Mas, também tô sabendo que o pessoal que mora lá por São Carlos, Nazaré e Calama, só tem energia de motor gerador, mesmo tendo duas grandes hidrelétricas em Porto Velho e que tiraram muita gente da beira do rio pra construírem elas e tem gente que até hoje não recebeu seus direitos”. Pois é, foi isso que eu ouvi e fiquei muito preocupada e já estava de saída quando outro pescador ainda disse mais: “tô sabendo que os pescadores de Santo Antonio, Teotônio, Jaci, Mutum, na Bolívia e região de Guajará Mirim não tem mais direito de pescar no rio Madeira e que mais de 80% dos peixes desapareceram, ou seja, morreram com a construção das barragens e como é que os peixes vão subir o rio com isso no meio do caminho deles... Não tem mais reprodução dos peixes e com isso os pescadores foram enganados com algumas compensações e nada mais. Tá todo mundo urrando sem peixe, sem rio, sem comida e com dívidas pra pagar”.

Dona Curimba balança o rabo e entra na conversa:
-Então quer dizer que nossos parentes peixes grandes e pequenos foram mortos pelos construtores dessa tal barragem e por isso os pescadores da região de Calama tão batendo direto atrás de nós para mandar pro povo deles de Porto Velho¿ Eles exterminaram com nossos parentes e ainda sobra pra nós aqui no baixo Madeira¿

Dona Branquinha tentando ajudar o grupo a entender continuou:
-É, pelo que entendi é isso mesmo, porque até escutei os seringueiros dizerem que o tal do governo deles até “trocou terra de preservação lá pras bandas de União Bandeirantes pra poder inundar na região da serra dos Três Irmãos na beira do Madeira e que na região de Tabajara o governo já diminuiu o Parque Campos Amazônicos para que a Usina de Tabajara seja construída e inunde parte dessa região, onde também tem indígenas sem contato”. Isso quer dizer peixarada, que nóis temos que juntar mais peixe nesta caldeirada de resistência e vamos fazer um banzeiro antes que seja tarde.

O Mandi, com seu esporão pontiagudo pede licença pra usar a palavra:
-Eu estou escutando vocês e estou muito preocupado. Meu povo que vive nas beiras dos barrancos desses rios estamos sofrendo uma perseguição muito grande. Antes quando tinha maior quantidade e diversidade de peixes, os tais humanos tinham esquecido de nós e poucos se interessavam pelo nosso corpo em seus pratos, mas agora, nos tratam até com discriminação enquanto nos comem: “ixi, só tem mandi; mandi di novo; não tem outra coisa; o jeito é comer mandi”... Isso está nos ofendendo, porque além de alimentar esses buchudos do beiradão, ainda sofremos tal do buli e todo dia estão lá no barranco nos pescando só porque gostamos de comer barro nas plantas e outras cositas más que jogam no rio... comemos o que tem, já que nossa vida não tá fácil não pra se alimentar! Pra sobreviver temos que esporar os desavisados pra tentar escapar de suas mãos e evitar de ir pra panelas desses humanos.

O Peixe cachorro fica esperando o Mandi terminar e já emenda:
-Já a minha parentada, que antes era pouca visada pelos pescadores, agora não escapa um; todos vão pra panelas deles, pra grelha onde nos assam e se deliciam mesmo reclamando que temos bastante espinho, coisa e tal... não tem jeito, eles não nos deixam em paz... todo dia tem pescador nos lagos, igarapés e igapós com linhadas, caniços e malhadeiras, mesmo no período da piracema, quando dizem que é proibido nos pescar, mas nada, eles não respeitam e nem pensam nos seus filhos e netos... quero ver como vai ser pra essas pessoas quando nós resolvermos fugir pra longe deles, se é que exista algum lugar onde possamos ir e viver livres deste medo de todo dia.

O Tucunaré-açu, idoso, que de longe escutava a conversa chega bem perto e pede a palavra:
-Óia meus parentezinhos, eu que já vivi muita coisa, já escapei de tantas armadilhas da vida, posso dizer que tá cada vez mais perigoso pra nós viver nestes rios da Amazonia. Por um lado tem as tais pescarias de pegue-e-solte, que traz os ricos de vários países para nos pescar, rasgar nossa boca, tirar fotos e nos soltar machucados, como se fôssemos descartáveis, como se não sentíssemos dor. Aí quando menos se espera lá colocam barreira de cimento em nosso caminho e não podemos mais subir com nossas fêmeas para lugares seguros pra desova. Eu vi lá em Santo Antonio do Madeira, onde fizeram tal da barragem, que deixaram um canal pra subida dos peixes, mas aquilo é um crime, a gente tenta subir e cansa e volta se batendo, se cortando, se machucando e não consegue. Antes não, quando não tinha barragem nós tínhamos o caminho entre as pedras por onde nadávamos, parávamos, descansávamos e seguíamos nossa migração. Agora isso não ocorre mais. Ficamos prisioneiros no rio e tivemos que buscar saídas pra reprodução nos lagos menores e todos cercados por humanos que não deixam nossos filhotes crescerem e já os pegam e com isso estamos diminuindo e vamos desaparecer... Todos os humanos falam que caldeirada boa é de Tucunaré, mas ninguém quer ficar sem comer pra deixar a gente se reproduzir...isso é um crime contra nosso direito de ser peixe e direito de reprodução pra alimentar eles próprios...Isso me deixa muito indignado!

O Surubim, peixe liso, também conhecido por Cachara vem lisamente entrando na conversa:
-Meu povo gosta mesmo é de viver nos lagos, livres e em águas calmas. Mas isso já não é mais possível nestes tempos. As águas estão agitadas, pesadas, barrentas. Parece que quem manda na vida do rio agora são os tais humanos, porque mesmo sem chuva as águas sobem e baixam de repente. Não é mais as forças da natureza que conduz nossa vida, mas sim os humanos. Diante disso, nossa vida tá confusa, porque as frutas não temos mais desde a grande inundação de 2014, quando a maioria morreu. Depois veio as queimadas que chegaram matando a vida até na beira dos rios. Agora pra completar querem estes tais humanos construir mais uma barragem no nosso rio Machado ¿ Onde isso vai parar e nossos direitos como peixes que tem vida, que alimenta os tais humanos, ou será que não nos consideram seres vivos¿ será que eles não sabem que nós fazemos parte da mesma cadeia alimentar da qual eles também fazem parte, ou seja, nossos direitos de existir é o que sustenta o direito deles, ou estou errado¿ Eu penso que devemos convidar mais peixes pra nossa reunião e fazer um Manifesto de nossos direitos.

Dona Branquinha que coordenava a reunião concordou e pediu a sua filha que fosse chamar dona Pirarara, considerada a maior do rio Madeira em tamanho e única que coloca medo nos pescadores.

Dona Pirarara chega com toda sua opulência, entra na roda e como já foi informada do assunto pela filha de dona Branquinha foi se expressando:
-Eu agradeço por terem me chamado, porque também estou preocupada com minha família com esta situação. Os pescadores antes dessas barragens no rio Madeira, só pescavam meus parentes acima de um metro de cumprimento, mas agora, com a dizimação que promoveram contra nossa comunidade, estão pegando e levando pra suas casas qualquer tamanho. Esta semana mesmo meu filhote menor de cinquenta centímetros foi fisgado e levado, antes mesmo da liberação do período da piracema. Nós não temos mais paz e muito menos respeito com nosso direito à reprodução, crescimento e vivencia. Ainda querem construir mais hidrelétrica no rio Machado¿ Isso é crime contra nossa vida e dos indígenas que vivem nesta região, pois tem os Tenharim, Diahoy, Arara, Gavião e os indígenas sem contatos que também tem direito ao rio livre e pelo que sei, se fazerem barragem em Tabajara vão alagar parte da terra onde vive estes isolados... até escutei os Kawahiwa falando que eles tem direito de serem consultados diante desta ameaça e ai me perguntei e NÓS não vão nos consultar também¿ Não vão consultar a floresta que vai ser exterminada, alagada¿ Será que nossa vida tem menos valor que a das pessoas¿ Elas não depende de nós e da floresta pra se alimentar¿ Como querem nos destruir sem respeitar nossos direitos¿ Não, isso não tá certo, temos que construir nosso Manifesto é agora. Quem vai anotar nossas ideias¿

Dona Branquinha, toda organizada, colocou a cabeça pra fora e chamou dona Garça, que de pernas compridas comia algumas algas ali perto e ao saber do assunto se coloca para ajudar, mas muito sem saber o que fazer pergunta o que querem que ela faça, o que de pronto dona Branquinha lhe orienta:

-Dona Garça precisamos que escute nossas palavras e as leve até os homens que estão fazendo o projeto da hidrelétrica de Tabajara lá em Brasília. Sabemos que é longe, mas pode ir parando pra descansar, sem portanto perder cada palavra nossa. Dona Garça de pronto levanta pra escutar cada palavra que toda Branquinha foi ditando com base nas falas de cada um dos participantes deste Manifesto, que assim foi criando corpo:

“Fica decretado que nós, os peixes dos rios: Machado, Preto, Madeira, Mamoré, Guaporé, Aripuanã, Marmelos, Teles Pires, Tapajós, Xingú, Abunã, Madre Dioz, Beni e entre outros, somos portadores de direitos.

Temos direito à Vida para manter a vida de vocês, pois se alimentam de nossos corpos. Mas, para que nossos corpos alimentem a vida de vocês, precisamos primeiro ter condições de nos alimentar, crescer e reproduzir com segurança. Do contrário tanto nós como vocês perderemos.

Sabemos que fazemos parte da cadeia alimentar da qual vocês humanos também fazem parte. Entretanto, assim como vocês, nós temos direito a viver nosso tempo de vida necessário para garantir nossas atuais e futuras gerações.

Fica decretado que nenhum peixe é menor em tamanho ou valor que o outro. Todos temos importância por igual. Abaixo toda forma de depreciação, seja por tamanho ou característica, pois lhes servimos na hora e na situação em que se encontram. Dessa forma, todos temos valor por igual.

Fica decretado que nossos rios tem que viver livres de barragens para que a vida possa ser plena. Cada rio barrado é causador de morte não por vontade própria, mas, pelas consequências das más intervenções. Nenhuma barragem mais em rios da Amazônia, Sim a Vida!

Fica decretado que nossos corpos são portadores de experiências e vivencias seculares nesses rios da Amazônia. Temos histórias próprias de cada espécie e modos de vida específicas, que por isso, só com rios vivos poderemos viver nossas especificidades.

Fica decretado que as águas que nos alimentam e nos conduzem a vida "são águas sagradas".

Fica decretado que NÓS os PEIXES, os RIOS e as FLORESTAS, aliadas aos povos e comunidades tradicionais, somos imprescindíveis para o equilíbrio da vida no planeta Terra.

Fica decretado que a Vida é o bem maior”

Ao concluir a narrativa todos os peixes deram saltos, mergulhos e bateram as nadadeiras, quando ia passando por ali o Boto Tucuxi, que ao se aproximar todos se juntaram com medo, mas ele que havia escutado boa parte da narrativa, foi logo dizendo:

-Não tenham medo, eu estou com vocês também nessa. Todos nós estamos sofrendo com as mazelas dos tais humanos. Vamos somar nossos esforços para que não se construa mais nenhuma barragem nos rios da Amazônia.

Novamente foi a maior festa, fizeram nados sincronizados comemorando esta união dos peixes.
Dona Garça, que escutou tudo e se emocionou com a narrativa e responsabilidade de levar a mensagem aos humanos, pediu a palavra:

-Peço licença para dirigir a palavra ao cardume, pois nunca me senti tão útil como agora. Vou fazer de tudo para corresponder com a missão dada e farei de tudo para cumpri-la. Ainda hoje começarei meu voo de mensageira. Vou passar por Porto Velho, no Ministério Público Federal e na Eletronorte deixarei a mensagem de vocês. De lá seguirei direto para Brasília, onde falarei para o Executivo, Legislativo e Judiciário. Falarei também para os ambientalistas, para os meios de comunicação social, para as comunidades religiosas, acadêmicas, enfim, pra todo mundo, porque até agora eu só tinha ouvido falar de “direitos humanos”, mas, é a primeira vez que escuto falar dos “direitos da natureza”, a começar pelos peixes. Isso é fantástico e ao mesmo tempo difícil de se fazer ouvir. Mas, eu uma simples Garça branca da Amazônia, da boca do rio Preto com o rio Machado, desaguando no rio Madeira, iniciarei meu voo em favor da vida não só de vocês, mas da minha também.

E assim partiu dona Garça voando nesta missão possível, em defesa dos Direitos da Natureza!

Iremar Antonio Ferreira – templo de reclusão – Porto Velho, 01 de abril de 2020.