terça-feira, 22 de abril de 2014

TAPAGEM - SÍMBOLO DA RESISTÊNCIA YJXA

TAPAGEM: A PESCARIA DA MEMÓRIA


Chegar à Aldeia Joari do Povo BYJWYTY OSOP AKY ou YJXA, nominados no contato pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), por Kapivari e Karitiana é uma grande aventura. Após 31km pela rodovia BR 364 sentido Jacy-Paraná entra-se mais uns 35km por uma estrada vicinal, sendo que os últimos 3km é por dentro de pastagens (verdadeiros atoleiros e pontes em péssimas condições, por onde disputa-se com os bois a rota da viagem) da fazenda que detém o domínio sobre as terras do antigo território dos YJXA. Este acesso representa a exclusão, a opressão e a resistência. Cada veículo que ali chega é sinal de esperança, de carona garantida para alguns. Na ída bastante sacolas, na volta bastante sacolas, utensílios necessários para se ajeitar na velha e excludente "Casa do Índio", onde água encanada e energia é luxo...

A Aldeia JOARI, cujo Cacique é o senhor Raimundo Karitiana, que conta com uma população estimada em 40 pessoas, divididas em oito famílias, é fruto da retomada de território antigo onde o boi e o trator se incumbiram do trabalho de apagamento da memória material, porém a memória imaterial remeteu estas famílias à tarefa árdua da reconquista da Terra, da Memória, da Vida.

O convite para a visita no dia de Páscoa = ressurreição = indignação diante da opressão dos menos favorecidos, partiu do Ahin Karitiana (popular Antenor). Nossa meta era de participar da Tapagem no rio Preto que margeia a Aldeia Joari. Viagem confirmada e realizada após o Programa Vozes da Amazônia, edição do dia 20 de abril com a presença do Ahin, cujo tema central foi os Povos Indígenas, sua etnohistória, a dizimação, o ressurgimento e desafios da atualidade. Assim por volta das 11:30 da manhã estávamos partindo rumo a aldeia na expectativa de ainda pescar pra comer peixe de verdade, de rio. No geral consumimos peixe criado com ração em açudes, o que compromete a qualidade da carne, o sabor... Logo pensar na oportunidade de comer peixe novinho e direto do rio nos animou estrada à fora, mesmo sabendo que devido a chuva que virou a noite poderia ter comprometido o trajeto de atoleiro, mas que não abalou nossa confiança.

Chegamos na Aldeia Joari por volta das 14:00. Na rodada de visita recebemos (eu e Ahin) carne de caça com arroz e feijão, seguido de chicha de mandioca pra completar a refeição. Tão logo terminamos fomos para o local onde está construído a Tapagem.

A Tapagem é um método tradicional deste Povo recolher do rio o peixe, alimento sadio de cada novo dia. Ao olhar de relance para a construção de pau a pique que corta o leito do rio, dá-se a impressão de que tudo foi fácil e rápido na montagem deste barramento no caminho dos peixes...

Ahin me conta que naquele ponto do rio Preto quando ele ainda tinha uns 3 anos de idade, seu pai colocou tapagem naquele ponto do rio. Neste ponto é possível porque possui barranco alto, ou seja, o rio está encaixado no leito. A lembrança do tempo de infância fez Ahin se remeter ao tempo que seus pais eram vivos e compunham o tronco Kapivari. Mas ele também se recorda das histórias contadas pelos mais velhos, que antigamente os YJXA eram um grupo grande que viviam todos juntos, mas depois se separou, um grupo foi pra região de Ariquemes, que ficaram conhecidos por Arikem, outro mais abaixo do rio Jamari, outro ainda (os Kapivari) cruzaram o rio Candeias rumo ao rio Madeira e um quarto ficou nas margens do rio Candeias (os Karitiana). Por isso é possível encontrar vestígios da memória material destes pela região: cemitérios, troncos de malocas antigas, ilhas de terra preta que sinaliza ocupação indígena por exemplo.

Fiquei acompanhando Ahin por um bom tempo espreitando a Tapagem na esperança de que algum cardume de jatuarana, jaraqui ou tucunaré adentrassem ao curral e assim fizessem parte de nossa dieta alimentar na noite. Mas em vão...caiu a tarde e eles não vieram. Na noite no jantar chicha e arroz com carne de caça.

A Tapagem cerca todo o leito do rio, feito com arbustos que resistem por um bom tempo dentro d´água e todos são armados e firmados com cipós, ou seja, não vai um único prego na construção, verdadeira obra de construção civil, com muita técnica e ciência empregada, desde a qualidade das madeiras, os troncos, o nível do rio, a inclinação para que suporte o peso da água, a vazão para que não provoque represamento, a disposição da porta e seu encaixe para vedar o retorno dos peixes assim que a mesma for acionada por um grande cipó esticado até em terra onde ficam os espreiteiros, os observadores de cardume. 

A construção da Tapagem é feita quando ainda é verão e o rio está bem baixo, ou seja pelo mês de outubro e demora em torno de uma semana sua construção com uma equipe boa de cinco homens trabalhando diretamente, para quando a chuva chegar o mesmo já está pronto para cumprir seu papel na captura do alimento fundamental, o peixe. Na parede da Tapagem escolhe-se um local para se colocar uma porta que dá acesso a um curral/cercadinho também de pau a pique, que vai receber os peixes, que também ao adentrarem este recinto encontrarão duas falsas saídas os xiquis (construído em forma de cone onde o peixe entra e não consegue retornar), tornando-os presas fáceis.

Foi na manhã do dia 21 de abril que logo cedo fui convidado a sair da rede e a correr para o local da Tapagem, porque Ahin me chamava para ir fotografar a retirada dos peixes no cercadinho. Foi alegria geral porque iniciamos o dia com uma boa pescaria. Não tal qual da semana anterior em que pegaram mais de 10 sacas de jatuarana num único dia, muito peixe, alimento dividido com a Aldeia Central, cujos rapazes vieram de motocicleta buscar. Mas os jaraquis e jatuaranas capturados fizeram alegria dos presentes na certeza de que o almoço estava garantido, fato este que se repetiu mais vezes pela tarde, porém nunca comparado à pescaria já ocorrida, porque um buraco próximo à porta da Tapagem permitiu a fuga de vários tucunarés e jatuaranas. Ahin se disse decepcionado com a pescaria, mas eu, fiquei feliz pelo aprendizado coletivo vivencial oportunizado pelos moradores da Aldeia Joari. 

No almoço comemos alguns dos peixes capturados, já que pela pequena quantidade deveria ser partilhado ainda com algumas pessoas que estão na "Casa do Índio" em Porto Velho e que também aguardavam pelo alimento sadio.

A Tapagem do YJXA ainda vai perdurar por mais dois meses, depois será desmontada e somente no final do verão novamente tomará forma e alimentará seus filhos. Ahin disse que antigamente seus pais secavam e salgavam peixe capturado neste período para se alimentar no período de verão, mas disse com olhar triste, que isso agora não mais é possível, tem pouco peixe e por outro lado, o que é bom, nosso povo está aumentando cada vez mais. Atribui também a escassez do peixe às derrubadas constantes que os fazendeiros promovem para dar lugar às pastagens e que nos períodos de chuva carreiam para o rio muito material ofensivo para os peixes.

Algumas pessoas da Aldeia Joari disseram que quando pegar bastante jatuarana vão fazer moqueado, vão fazer festa da jatuarana, que já faz tempo que não acontece, mas que agora que estão de volta ao local antigo dos Kapivari, que estão fazendo tapagem, vão brevemente fazer festa tradicional também.

A Tapagem é um passo importante para a construção do senso de comunidade, do fortalecimento cultural, de trabalho e divisão coletiva dos frutos do trabalho, ou seja, os peixes.

A Tapagem é um simbolo de resistência dos YJXA à expansão da pecuária e do desmatamento de florestas do território antigo e tradicional dos Kapivari. Tapagem é vida, resistência e Vitória! 


Vista de chegada da Aldeia Joari
 Tapagem no rio Preto e vê-se a porta por onde o peixe entra no cercadinho

 Jorge Karitiana com a zagaia pronta pra fisgar peixes maiores
 Ahin e cacique Raimundo observam peixes no cercadinho
 jatuaranas
 xiqui - caminho sem volta pro peixe
 jatuaranas e jaraquis...
 meninos se preparam para o transporte dos peixes para a aldeia
Araras coloridas em seu poleiro no terreiro da aldeia - fontes de penas para artesanatos tradicionais