sábado, 2 de novembro de 2013

UMA LEITURA LÚCIDA DE UMA TRISTE REALIDADE...


por Claret Fernandes*
Numa situação normal Belo Monte não se teria iniciado ou já teria parado há muito pelo caminho.  Pela 20ª vez, o Ministério Público Federal pede a sua paralização. A Justiça Federal acatou a ação com argumento de não cumprimento de condicionantes e suspendeu a licença da hidrelétrica na sexta-feira à tarde, 25 de outubro, inclusive com proibição de repasse de dinheiro do BNDES à Norte Energia. Na noite adentro do dia 30/10, quando o tempo é todo escuro ou penumbra, antes que a Norte Energia desmobilizasse seu batalhão de operários e máquinas, a Advocacia Geral da União – AGU cassou a Liminar. Desde que se iniciou a construção de Belo Monte, em junho de 2011, a obra já foi paralisada em média 100 dias por conta de manifestações e decisões judiciais.
A nota de imprensa da empresa é pouco esclarecedora. O que entendi é o seguinte: quem tem poder, manda e pronto! O fato é que Belo Monte, que teria parado, não parou sequer um segundo, e o próprio governo federal cuidou de desobstruir o seu caminho, retirando-lhe mais esse pequeno obstáculo.
Um dos principais questionamentos do Ministério Público Federal é o reassentamento urbano coletivo, que envolve mais de 30 mil pessoas e cuja ‘destinação’ é responsabilidade da Norte Energia como parte integrante do Plano Básico Ambiental. Ela pensa em limpeza social, retirando famílias para ampliação de cais, tornando o espaço atual do povo um lugar nobre para bananas, e, com um calendário apertado, com previsão de enchimento do lago já no final de 2014, a empresa coloca o pé no acelerador, e a população, com um destino incerto, fica também com um destino extremamente inseguro.
As promessas vão às favas! Além dos discursos mirabolantes do governo federal, com o jogo de belas imagens, afirmando que Belo Monte seria diferente do Madeira (Jirau e Santo Antônio), o PBA reza que a vida do atingido deve melhorar com a barragem e, por cima, a  Norte Energia divulgou boletim informando três tipologias de casas, com tamanhos diferenciados. Na sua correria, agora, ela impõe casa de concreto e uma tipologia apenas, com 63 m2.  Popularmente, as pessoas dizem ‘casinhas velhas’.
Numa situação crônica e histórica de abandono que permite pouco sonho, a população empobrecida de Altamira esperava pouco, muito pouco: uma casa de alvenaria! Apoiada nessa esperança, pouco se dispôs a mobilizações. Mas essa esperança, agora, está por um fio. A qualquer hora o povo pode rebelar-se. Nesse clima, que será de barbárie ou rebeldia organizada, os joguinhos de palavras, num misto de arrogância e cinismo, não darão conta de conter o tamanho da indignação represada. E tanto os governos subservientes ao Capital, mas não inocentes, quanto a Norte Energia poderão sofrer sérios revezes.
Há sinais de divisão dentro do próprio governo quanto ao significado de Belo Monte, e seu impacto na carreira de políticos ‘profissionais’. Isso por enquanto é guardado a sete chaves, não se sabe até quando. Já a Norte Energia, agora, nesse exato momento, está por cima da carne seca, no sentido literal. Sente-se como uma deusa! Quatrocentos pescadores se mobilizaram nos dias 29 e 30/10, trancaram a Transamazônica, e a empresa disse apenas que vai fazer reuniõezinhas por Colônia no dia 9 de novembro para averiguar se são mesmo pescadores ou não. Chamou-os, então, de mentirosos! O lucro cessante do Cacau, sobre 22 anos de produção, que na região do muro da barragem valia 96 reais - o que já era uma ninharia - agora vale 46 reais. Como explicação, basta a empresa dizer que se equivocara, como o fez no dia 18 de outubro, quando famílias organizadas no MAB ocuparam o seu escritório. Nessa ocasião, ela assumira compromisso de reunião em Altamira, Assurini e Brasil Novo, o prazo venceu e nem notícia mais. A Liminar que suspendia a licença de Belo Monte foi derrubada pelo próprio governo.
Hoje, se a Norte Energia diz que pau é pedra fica sendo, pois o sentido das coisas é, antes de tudo, uma questão de poder.  Isso precisa ficar registrado na história para que todo povo que traz vivo no peito o sonho da liberdade o aprenda uma vez por todas. Não há soberania sem povo organizado e conquista (tomada) de poder, diferente de chegada ao poder.
O tão badalado PBA funciona, na verdade, como nariz de cera. Quando é de seu interesse, a Norte Energia o segue à risca. Quando não é de seu interesse, como o caso do reassentamento urbano, ela o chuta, lhe rasga as folhas e o enxota como a uma mosca que ronda por perto, e ameaça cair na sopa de negócios escusos e rentáveis. Tudo se torna oportunidade de lucro, até o direito do atingido. O PBA é uma falácia! Belo Monte é uma obra sem lei, onde impera o poder do mais forte.
Esse é o significado da prepotência: as regras, as condicionantes, as leis se torcem à vontade, a bel prazer do Capital, e de interesses corporativos de políticos neoliberais, em suas diversas esferas.
A luta pelo direito do povo faz parte da luta contra Belo Monte! Não admitir isso é cair na abstração e cinismo. Entre os direitos fundamentais, está o reassentamento, que deve incluir, na sua estrutura e localização, a garantia efetiva de todas as políticas públicas. Isso vai desde a casa segura, confortável, com possibilidade de adaptação ao ‘jeito’ de cada família; desde água, luz, ruas de qualidade; desde equipamentos públicos e coletivos com pessoal para efetiva garantia da educação, saúde, lazer, locomoção; desde a previsão de espaços e recursos para o cuidado das crianças, dos jovens, dos idosos; desde a antecipação de meditas para minimizar os traumas de pessoas expulsas de suas residências, de seus trabalhos, e humilhadas; desde ajuda de custo para gastos adicionais (como água e luz, que hoje não são pagas); desde ser sujeito em todo o processo até a estruturação dos meios de subsistência de cada família para a efetiva melhora das condições de sua vida. As questões estruturantes precisam ser encaradas e resolvidas. Infelizmente, até o momento nada disso é levado em conta.
O fato mais importante, porém, é que Belo Monte teria parado. A questão relevante não é se parou um segundo ou 100 dias; a questão relevante é que vai crescendo o número dos que não rezam na cartilha do desenvolvimento neoliberal, e do capital. Até mesmo alguns fanáticos do esquerdismo populista já começam a desconfiar. Embora ainda estejam em suas fileiras, não mais atendem com tanta presteza ao assovio dos chefes, feito cães adestrados. A boiada pode estourar na Campanha, quando cada aliança e cada voto são tão precisos! Existe algo novo nos ares palacianos.
 Entre os cidadãos, por sua vez, que sejam de setores empresariais, dos indígenas, dos atingidos em geral, cresce o sentimento de que Belo Monte é um engodo. Um alto funcionário da Eletronorte o reconheceu pessoalmente em reunião com um amigo nosso, pessoa comprometida, mas esse funcionário não pode dizê-lo em público para não perder seu ganha-pão, e a sombra fresca do poder.
Famílias da região da barragem seguem buscando a organização, pelo amor à Causa ou pela dor. Indígenas e pescadores podem voltar a qualquer momento. Em Brasil Novo, 300 pessoas estão acampadas desde 6 de janeiro de 2013. Em Vitória do Xingu, o número de acampados pode chegar a 3 mil pessoas,  e resistem desde outubro de 2012. É um barril de pólvora que vai se formando ao redor de Belo Morte, que pode explodir a qualquer momento.
A conjuntura imposta por Belo Monte traz outro elemento: os gestores dos três municípios diretamente atingidos balançam em corda bamba! O prefeito de Vitória do Xingu já caiu por crime eleitoral, e a cidade se mobiliza para novas eleições nos próximos dias. O prefeito de Altamira está cai que não cai (ainda seguro pelos padrinhos), por supostos desvios quando fora presidente da Alepa. A prefeita de Brasil Novo está se estrebuchando na Justiça para defender-se de denúncia de crime eleitoral.
 Essas sacudidelas têm a ver com ilegalidades no campo político e pessoal, mas têm a ver, também, com o olho gordo nos impostos de Belo Monte. Vitória do Xingu chega a receber, hoje, 10 milhões de reais/mês de ISS. Mas isso são cenas para um próximo capítulo!
Belo Monte teria parado! Se esse gigante cai de vez, como ocorre na transposição do São Francisco, e outras tantas obras como elefantes brancos, muitos caem com ele, em Brasília e em diversas partes desse país, e do mundo. As margens plácidas do poder iriam tremer como em furacão. Pois suas garras e benesses vão longe, e muito fundo.
O estrago social e ambiental de Belo Monte está feito. Mas há outro estrago iminente, cujos sinais começam a revelar-se. Somente olhos atentos conseguem percebê-los: o gigante não é mais tão temido e o povo não é mais tão cordeiro! Não se trata de ameaça nem profecia barata! Os que pensavam em surfar nessas ondas gigantes podem estar com os dias contados, e morrer na praia. Ascendeu-se a luz amarela no céu de Belo Monte!
 

*padre missionário na Prelazia do Xingu e militante do MAB.