MEMÓRIAS
DA MÃE NATUREZA
Certo dia, na beira do
barranco de um dos rios formosos da Amazônia, ocorreu um inusitado encontro. Um
grupo de pessoas, denominados de ribeirinhos olhavam para as águas que passavam
carregando troncos, galhos, folhas, barro, areia entre tantos outros
componentes da natureza e conversavam sem preocupação com o tempo do relógio.
No grupo homens e mulheres, cada qual com suas marcas do tempo no rosto, nas
mãos e nos pés e com muita história pra contar histórias que nos ensinam a pensar
o simples e o complexo da vida. Assim começo a narrar o rumo desta proza.
Dona Maria, que parecia
ser das mulheres presentes, a mais desinibida, olha ao longe e principia o
diálogo:
Cuma tão já parentada,
ainda ontem a noite ouvindo meu radinho, escutei uma música que me deixou
pensativa. A cantora, que num sei o nome, começou assim a canção até longa, mas
muito bonita e triste: “Era uma vez na
Amazônia a mais bonita floresta. Mata verde, céu azul, a mais imensa floresta.
No fundo d'água as Iaras, caboclo, lendas e mágoas e os rios puxando as águas.
Papagaios, periquitos, cuidavam de suas cores. Os peixes singrando os rios,
curumins cheios de amores. Sorria o jurupari, uirapuru, seu porvir. Era fauna,
flora, frutos e flores...”. Quando ela terminou meus olhos estavam cheios
d’água. A saudade bateu muito forte, lá no fundo...
Dona Antônia que estava
sentada ao seu lado comovida pergunta: Atiéche cumadi, porque tão já?
Dona Maria continuou:
Mi alembro de minha infância. Nasci num lugar que era muito lindo. Tinha um
lago maravilhoso, era chamado de Lago do Cará, bem no interior do Amazonas.
Cará era um tipo de peixinho que tinha lá, que quando meu pai pescava, minha
mãe cozinhava em caldo, assava ou fritava e com farinha, meu Deus que gostuso!...
e tinha outros tipos de peixes também: jatuarana, matrinxã, branquinha...vixi
maria! Muitas qualidades e tamanhos. E nesse lago era rodeado por grandes
castanheiras, açaizeiros, buritizeiros, babaçuais, abacabeiras...tanta fruta,
tanta fartura!... Mas, nós tivemos que sair de lá com o tempo. A família foi
crescendo, foi crescendo. Como era longe e tinha poucas pessoas, lá num tinha
escola, nem posto de saúde, nada disso. Minha mãe e meu pai se preocupava com
nóis, um monte de filhos. Ai decidiram sair do Lago do Cará e procurar outro
lugar com mais benefício. Colocou tudo no batelãozinho e saímos em busca de
outra colocação onde tivesse melhores condições. Ai paramos aqui...Eu deixei
tudo aquilo pra trás...
Dona Antônia entra na
história de Maria e vai dizendo:
Manazinha, como nossas
histórias se parecem. Eu vim do paranã (rio) Marmelos. Lá num era lago, mas
tinha muita riqueza. Cada peixão que meu pai flechava... e quando ia caçar o
que ele queria, ou que mamãe pedia, ele flechava e trazia para nossa maloca,
nosso tapiri. Era muita fartura e a gente tinha muita saúde, porque vinho de
tudo tipo de fruta nóis fazia: vinho de açaí, abacaba, murici, patoá, bacuri e
tantos outros...que delícia, só de alembrar me deu vontade. Mas, também tinha
as dificuldades, né. Com o tempo a tal da maleita (malária) foi chegando e
nossas ervas medicinais não davam conta de nos curar e o jeito foi sair de lá e
ir em busca de recursos, vindo parar aqui. Aqui é bão sabe, eu gosto daqui, mas
na beira de um rio grande como esse é mais difícil...é como se não fosse nosso
esse local, não é onde nosso umbigo está enterrado né...
Senhor Quevedo, homem
alto, quieto na maioria das vezes, assoava o nariz, como que pedindo a palavra
e no silêncio dos demais tira o chapéu e relata.
Eu vim de muito longe
também. Vim do Alto Rio Solimões, onde ele é conhecido por Amazonas, em
território colombiano. Lá onde nasci e cresci também era muito rico de tudo.
Nossa vida era muito boa e com muita fartura. Mas começou crescer a cidade de
Manaus no período da Zona Franca e muita gente saiu dos interiores e foram pra
lá em busca de nem sei o quê. A maioria passou a viver do jeito que deus dá...
poucos conseguiram empregos nas indústrias que foram nascendo e crescendo...Eu
jovem, sem estudo nem nada, falando castelhano enrolado com português, fiquei
rodado e resolvi seguir o caminho das águas. Mas, ao invés de subir o rio de
volta eu decidi descer e ir em busca de sossego. Daí vim parar aqui e aqui
criei meus filhos, com toda dificuldade encontrada. Mas, lembro que antes era
muito diferente aqui também...hoje tá muito mudado!
Dona Burarei aperta o
lenço na cabeça e entra na conversa:
Eu tenho saudades do
meu tempo de criança! Nasci lá pras bandas de Santarém, na beira do Tapajós.
Lembro como se fosse hoje manuzinhos... Nóis era muitos na comunidade, mais
muitos mermo! Ai veio uma doença, tal de beribéri e matou quase todo mundo.
Alguns pra num morrer fugiu de lá pra dentro da mata e meu pai foi um desses,
nos levando pra bem longe. Nossa aldeia quase foi dizimada. Nossa vida longe da
antiga vila foi a melhor coisa que existiu, porque lá dentro da mata nóis tinha
tudo que a floresta dava...era uma riqueza só, cheio de vida, de saúde...
Depois tive família, o grupo foi crescendo e ai aos poucos fomos tomando rumos
e eu vim de barco com minha família parar aqui...eu me sinto feliz aqui, com
todas as dificuldades...
Senhor Pindoba que
estava só ouvindo entra no papo e em tom baixo, emocionado principia a fala:
Eu tava lembrando da
música que a dona Maria falou... Eu, diferente de oceis, nasci, cresci e me
criei aqui nesse lugar. Eu chamo aqui de Porto das Esperanças, um nome muito
bonito, assim como era este lugar a muito tempo atrás. Assim como onde oceis
morava, aqui era farto de tudo, de caça, de frutos, de produção, de peixes...
mas ai, como oceis percebem, além de nós, tem muitas outras pessoas que vão
chegando sem nossa permissão e entrando nos lagos, na floresta e eles vão
levando tudo que pegam ou caçam, com isso tá tudo escasso... nem palmito tem
mais e os lagos muito batidos de pescadores estão sem peixes... até pra nós se
alimentar tá difícil! Estão desmatando tudo ai pelas fundiárias para plantar
capim...nem as castanheiras eles deixam..! Como vai ser se continuar assim!
Como ficará a situação de nossos netos, bisnetos, tataranetos e assim por
diante? Vamos deixar que os de fora acabem com tudo e nós não vamos fazer nada?
Todos se sentiram
provocados por suas palavras. Dona Maria se adianta dá sua sugestão:
Eu penso que se nós
temos direito a viver aqui na Porto das Esperanças, tudo que tem aqui: os
lagos, floresta, rios, peixes também tem direito! Porque se eles desaparecem
nós também vamos desaparecer, nós vamos morrer juntos. Porque um lago sem peixe
ele não tem vida, é água morta... a floresta sem animais, sem frutos, sem pássaros
é sem vida também... e nós sem tudo isso também vamos ficar doentes e vamos
morrer. Não dá pra ficar de braços cruzados.
Dona Burarei emenda:
Eu também tô de acordo
com oceis...já tive que fugir de doenças e de novo não dá, porque tá tudo
ocupado já pelos que só querem matar com fogo a floresta... tem rios entupidos
de árvores que eles derrubam pra plantar capim e coloca uns bichos que chamam
de boi e vaca...como pode isso, acabar com o lugar do caititú, da anta, da
paca, da onça, da cutia, do gato do mato, da jaguatirica pra colocar só boi e
vaca! Isso não é justo... e pior com os igarapés entupidos vem a maleita que
chega até nóis e pode nos matar. Vamos fazer alguma coisa, alguém tem que nos
ajudar, nossa casa corre perigo e não tem mais pra onde fugir pra se esconder!
Senhor Quevedo levanta
o chapéu e fala:
Desse jeito só por
Deus! Estamos perdidos, porque esses que destroem só pensam em fazer dinheiro
com tudo e não pensam em nóis.
Seu Pindoba fica em pé
e aponta pro rumo da cidade grande e diz:
Nós vamos em busca de
ajuda. Sozinhos podemos ser pequenos diante de tantas ameaças que estamos
sentindo e sofrendo. Temos que nos organizar pra buscar ajuda. Vamos mandar uma
carta pras autoridades pra que venham aqui nos escutar sobre essa situação. Quero
saber quem sabe escrevinhar palavras no papel pra gente mandar pelo barco do
Caçote?
Dona Maria se propõe a
escrever, mas fica na dúvida e pergunta:
Sim, vamos mandar a
carta pra quem, se todos eles vivem longe daqui e não estão nem ai pra nossa
vida? Será que não será perda de tempo?
Dona Borarei levanta o
dedo e fala:
Acho que não é bem
assim genti...se nóis temos esse sentimento de amor pelo lugar que nóis
vivemos, deve ter alguém lá na cidadi que podi pensar como nóis!
Seu Pindoba toma a
palavra:
Ouvi dizer da urtima
veiz que fui a cidade, que tem um lugar da justiça que é pra defender as
comunidades, então vamos levar pra eles nossa carta, um tal de Ministério
Público Federal... Então vamos mandar pra eles...
Dona Maria a
escrivinhadeira com lápis e caderno na mão propõe a começar a carta, o que foi
concordado com todos. Após um tempo de concentração ela lê para os demais pra
ver se concordam.
“As
artoridades do Ministério Público Federau.
Nóis
vivemos bem longe de oceis. Vivemos na comunidade que nóis chama de Porto das
Esperanças, na beira do rio Madeira. Faz tempo que a genti mora aqui. Aqui era
muito rico de tudo. Mas agora tá tudo escasso. Aos poucos tá acabando nosso
modo de vida, porque ao redor tá cheio de derrubada e até nosso rio tá
diferente... quando a genti bebi água dele, dá dor de barriga... antes não era
assim!
Nóis
não queremos que nosso lugar se acabe, nem que acabem com nosso lugar, com
nossos igarapés, lagos, floresta, peixes, caça...
Nóis
queremos continuar vivendo aqui e criar nossos netos, bisnetos, tataranetos
para que todos tenham vida sadia.
Se
nóis queremos ter direito a vida sadia, queremos que a natureza que nos protege
e alimenta também tenha vida, tenham direitos iguais.
Queremos
que as autoridades nos ajudem a defender nossa comunidade, nosso modo de vida e
nossa fonte de vida, a natureza que nos sustenta, que nos alimenta!
Obrigado
por nos atender e nos defender.
Aqui
ficamos na espera da vinda de oceis pra nos escuitar e fazer no papel uma lei
que nos proteja e garanta os direitos da nossa mãe natureza...”
Ao terminar de ler,
todos estavam emocionados por verem no papel em letras desenhadas o desejo
deles. Agradecem a dona Maria pela carta e senhor Pindoba avisa que assim que o
barco subir ele vai acenar e entregar pro comandante a Carta de Porto das
Esperanças, para que chegue até as autoridades do Ministério Público Federal,
na capital de alguma cidade da Amazônia.
Assim se deu esta parte
da memória narrada de pessoas, dum lugar distante, sem importância para o
capital, mas que com uma pequena atitude, geraram um grande gesto de amor à
Vida, à Mãe Terra.
Narrador: Iremar
Antonio Ferreira, 20 de maio de 2020 (reflexão em tempos de reclusão)
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