quarta-feira, 20 de maio de 2020

MEMÓRIAS DA MÃE NATUREZA


MEMÓRIAS DA MÃE NATUREZA



Certo dia, na beira do barranco de um dos rios formosos da Amazônia, ocorreu um inusitado encontro. Um grupo de pessoas, denominados de ribeirinhos olhavam para as águas que passavam carregando troncos, galhos, folhas, barro, areia entre tantos outros componentes da natureza e conversavam sem preocupação com o tempo do relógio. No grupo homens e mulheres, cada qual com suas marcas do tempo no rosto, nas mãos e nos pés e com muita história pra contar histórias que nos ensinam a pensar o simples e o complexo da vida. Assim começo a narrar o rumo desta proza.

Dona Maria, que parecia ser das mulheres presentes, a mais desinibida, olha ao longe e principia o diálogo:
Cuma tão já parentada, ainda ontem a noite ouvindo meu radinho, escutei uma música que me deixou pensativa. A cantora, que num sei o nome, começou assim a canção até longa, mas muito bonita e triste: “Era uma vez na Amazônia a mais bonita floresta. Mata verde, céu azul, a mais imensa floresta. No fundo d'água as Iaras, caboclo, lendas e mágoas e os rios puxando as águas. Papagaios, periquitos, cuidavam de suas cores. Os peixes singrando os rios, curumins cheios de amores. Sorria o jurupari, uirapuru, seu porvir. Era fauna, flora, frutos e flores...”. Quando ela terminou meus olhos estavam cheios d’água. A saudade bateu muito forte, lá no fundo...

Dona Antônia que estava sentada ao seu lado comovida pergunta: Atiéche cumadi, porque tão já?

Dona Maria continuou: Mi alembro de minha infância. Nasci num lugar que era muito lindo. Tinha um lago maravilhoso, era chamado de Lago do Cará, bem no interior do Amazonas. Cará era um tipo de peixinho que tinha lá, que quando meu pai pescava, minha mãe cozinhava em caldo, assava ou fritava e com farinha, meu Deus que gostuso!... e tinha outros tipos de peixes também: jatuarana, matrinxã, branquinha...vixi maria! Muitas qualidades e tamanhos. E nesse lago era rodeado por grandes castanheiras, açaizeiros, buritizeiros, babaçuais, abacabeiras...tanta fruta, tanta fartura!... Mas, nós tivemos que sair de lá com o tempo. A família foi crescendo, foi crescendo. Como era longe e tinha poucas pessoas, lá num tinha escola, nem posto de saúde, nada disso. Minha mãe e meu pai se preocupava com nóis, um monte de filhos. Ai decidiram sair do Lago do Cará e procurar outro lugar com mais benefício. Colocou tudo no batelãozinho e saímos em busca de outra colocação onde tivesse melhores condições. Ai paramos aqui...Eu deixei tudo aquilo pra trás...

Dona Antônia entra na história de Maria e vai dizendo:
Manazinha, como nossas histórias se parecem. Eu vim do paranã (rio) Marmelos. Lá num era lago, mas tinha muita riqueza. Cada peixão que meu pai flechava... e quando ia caçar o que ele queria, ou que mamãe pedia, ele flechava e trazia para nossa maloca, nosso tapiri. Era muita fartura e a gente tinha muita saúde, porque vinho de tudo tipo de fruta nóis fazia: vinho de açaí, abacaba, murici, patoá, bacuri e tantos outros...que delícia, só de alembrar me deu vontade. Mas, também tinha as dificuldades, né. Com o tempo a tal da maleita (malária) foi chegando e nossas ervas medicinais não davam conta de nos curar e o jeito foi sair de lá e ir em busca de recursos, vindo parar aqui. Aqui é bão sabe, eu gosto daqui, mas na beira de um rio grande como esse é mais difícil...é como se não fosse nosso esse local, não é onde nosso umbigo está enterrado né...

Senhor Quevedo, homem alto, quieto na maioria das vezes, assoava o nariz, como que pedindo a palavra e no silêncio dos demais tira o chapéu e relata.
Eu vim de muito longe também. Vim do Alto Rio Solimões, onde ele é conhecido por Amazonas, em território colombiano. Lá onde nasci e cresci também era muito rico de tudo. Nossa vida era muito boa e com muita fartura. Mas começou crescer a cidade de Manaus no período da Zona Franca e muita gente saiu dos interiores e foram pra lá em busca de nem sei o quê. A maioria passou a viver do jeito que deus dá... poucos conseguiram empregos nas indústrias que foram nascendo e crescendo...Eu jovem, sem estudo nem nada, falando castelhano enrolado com português, fiquei rodado e resolvi seguir o caminho das águas. Mas, ao invés de subir o rio de volta eu decidi descer e ir em busca de sossego. Daí vim parar aqui e aqui criei meus filhos, com toda dificuldade encontrada. Mas, lembro que antes era muito diferente aqui também...hoje tá muito mudado!

Dona Burarei aperta o lenço na cabeça e entra na conversa:
Eu tenho saudades do meu tempo de criança! Nasci lá pras bandas de Santarém, na beira do Tapajós. Lembro como se fosse hoje manuzinhos... Nóis era muitos na comunidade, mais muitos mermo! Ai veio uma doença, tal de beribéri e matou quase todo mundo. Alguns pra num morrer fugiu de lá pra dentro da mata e meu pai foi um desses, nos levando pra bem longe. Nossa aldeia quase foi dizimada. Nossa vida longe da antiga vila foi a melhor coisa que existiu, porque lá dentro da mata nóis tinha tudo que a floresta dava...era uma riqueza só, cheio de vida, de saúde... Depois tive família, o grupo foi crescendo e ai aos poucos fomos tomando rumos e eu vim de barco com minha família parar aqui...eu me sinto feliz aqui, com todas as dificuldades...

Senhor Pindoba que estava só ouvindo entra no papo e em tom baixo, emocionado principia a fala:
Eu tava lembrando da música que a dona Maria falou... Eu, diferente de oceis, nasci, cresci e me criei aqui nesse lugar. Eu chamo aqui de Porto das Esperanças, um nome muito bonito, assim como era este lugar a muito tempo atrás. Assim como onde oceis morava, aqui era farto de tudo, de caça, de frutos, de produção, de peixes... mas ai, como oceis percebem, além de nós, tem muitas outras pessoas que vão chegando sem nossa permissão e entrando nos lagos, na floresta e eles vão levando tudo que pegam ou caçam, com isso tá tudo escasso... nem palmito tem mais e os lagos muito batidos de pescadores estão sem peixes... até pra nós se alimentar tá difícil! Estão desmatando tudo ai pelas fundiárias para plantar capim...nem as castanheiras eles deixam..! Como vai ser se continuar assim! Como ficará a situação de nossos netos, bisnetos, tataranetos e assim por diante? Vamos deixar que os de fora acabem com tudo e nós não vamos fazer nada?

Todos se sentiram provocados por suas palavras. Dona Maria se adianta dá sua sugestão:
Eu penso que se nós temos direito a viver aqui na Porto das Esperanças, tudo que tem aqui: os lagos, floresta, rios, peixes também tem direito! Porque se eles desaparecem nós também vamos desaparecer, nós vamos morrer juntos. Porque um lago sem peixe ele não tem vida, é água morta... a floresta sem animais, sem frutos, sem pássaros é sem vida também... e nós sem tudo isso também vamos ficar doentes e vamos morrer. Não dá pra ficar de braços cruzados.

Dona Burarei emenda:
Eu também tô de acordo com oceis...já tive que fugir de doenças e de novo não dá, porque tá tudo ocupado já pelos que só querem matar com fogo a floresta... tem rios entupidos de árvores que eles derrubam pra plantar capim e coloca uns bichos que chamam de boi e vaca...como pode isso, acabar com o lugar do caititú, da anta, da paca, da onça, da cutia, do gato do mato, da jaguatirica pra colocar só boi e vaca! Isso não é justo... e pior com os igarapés entupidos vem a maleita que chega até nóis e pode nos matar. Vamos fazer alguma coisa, alguém tem que nos ajudar, nossa casa corre perigo e não tem mais pra onde fugir pra se esconder!

Senhor Quevedo levanta o chapéu e fala:
Desse jeito só por Deus! Estamos perdidos, porque esses que destroem só pensam em fazer dinheiro com tudo e não pensam em nóis.

Seu Pindoba fica em pé e aponta pro rumo da cidade grande e diz:
Nós vamos em busca de ajuda. Sozinhos podemos ser pequenos diante de tantas ameaças que estamos sentindo e sofrendo. Temos que nos organizar pra buscar ajuda. Vamos mandar uma carta pras autoridades pra que venham aqui nos escutar sobre essa situação. Quero saber quem sabe escrevinhar palavras no papel pra gente mandar pelo barco do Caçote?

Dona Maria se propõe a escrever, mas fica na dúvida e pergunta:
Sim, vamos mandar a carta pra quem, se todos eles vivem longe daqui e não estão nem ai pra nossa vida? Será que não será perda de tempo?

Dona Borarei levanta o dedo e fala:
Acho que não é bem assim genti...se nóis temos esse sentimento de amor pelo lugar que nóis vivemos, deve ter alguém lá na cidadi que podi pensar como nóis!

Seu Pindoba toma a palavra:
Ouvi dizer da urtima veiz que fui a cidade, que tem um lugar da justiça que é pra defender as comunidades, então vamos levar pra eles nossa carta, um tal de Ministério Público Federal... Então vamos mandar pra eles...

Dona Maria a escrivinhadeira com lápis e caderno na mão propõe a começar a carta, o que foi concordado com todos. Após um tempo de concentração ela lê para os demais pra ver se concordam.

“As artoridades do Ministério Público Federau.
Nóis vivemos bem longe de oceis. Vivemos na comunidade que nóis chama de Porto das Esperanças, na beira do rio Madeira. Faz tempo que a genti mora aqui. Aqui era muito rico de tudo. Mas agora tá tudo escasso. Aos poucos tá acabando nosso modo de vida, porque ao redor tá cheio de derrubada e até nosso rio tá diferente... quando a genti bebi água dele, dá dor de barriga... antes não era assim!
Nóis não queremos que nosso lugar se acabe, nem que acabem com nosso lugar, com nossos igarapés, lagos, floresta, peixes, caça...
Nóis queremos continuar vivendo aqui e criar nossos netos, bisnetos, tataranetos para que todos tenham vida sadia.
Se nóis queremos ter direito a vida sadia, queremos que a natureza que nos protege e alimenta também tenha vida, tenham direitos iguais.
Queremos que as autoridades nos ajudem a defender nossa comunidade, nosso modo de vida e nossa fonte de vida, a natureza que nos sustenta, que nos alimenta!
Obrigado por nos atender e nos defender.
Aqui ficamos na espera da vinda de oceis pra nos escuitar e fazer no papel uma lei que nos proteja e garanta os direitos da nossa mãe natureza...”

Ao terminar de ler, todos estavam emocionados por verem no papel em letras desenhadas o desejo deles. Agradecem a dona Maria pela carta e senhor Pindoba avisa que assim que o barco subir ele vai acenar e entregar pro comandante a Carta de Porto das Esperanças, para que chegue até as autoridades do Ministério Público Federal, na capital de alguma cidade da Amazônia.

Assim se deu esta parte da memória narrada de pessoas, dum lugar distante, sem importância para o capital, mas que com uma pequena atitude, geraram um grande gesto de amor à Vida, à Mãe Terra.


Narrador: Iremar Antonio Ferreira, 20 de maio de 2020 (reflexão em tempos de reclusão)

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