MBOTAWA - O BEM VIVER SE FAZ NA FORÇA DA CULTURA INDÍGENA TENHARIM
Parte 1
O Povo PÜRY, mais conhecidos por Tenharim, ocupam as Terras Indígenas do Marmelos, Estirão Grande e Igarapé Preto, ambas violadas pelo traçado da BR Transamazônica na década de 60 e compõem um mosaico de unidades de proteção e conservação dos municípios de Humaitá e Manicoré.
Tradicionalmente realizam anualmente seu grande encontro na festa MBOTAWA. Sua organização tem por base os dois clãs: TARAWÉ - Gavião Real e os MUTUNAGWERA - Mutum.
A Aldeia que nos recebe a todos é a TRACOÁ, liderada pelo cacique Josemilton Tenharim que é Mutum, enquanto que o dono da festa é Tarawé. A festa se desenrolou ao longo dos dias 19 à 23 de julho.
Ainda em 2017 o jovem indígena TAPI (Valdemir Tenharim), aceitou o desafio de organizar e coordenar a realização da festa em 2018. Tapi tem o corpo franzino e disse que perdeu muitos quilos na preparação, na organização e até ficou doente, mas os parentes tocaram os trabalhos com a sua permissão. Ele não parou ao longo dos 3 dias de festas, aliás à mais de um ano na correria.
Tapi recebe todos os convidados, parentes indígenas ou não indígenas convidados com muito carinho, de braços abertos e coração afetuoso, mas ninguém (dos não indígenas) tem a dimensão do trabalho para chegar até este momento da Festa. Em conversa pausada para atender um e outro que chega ele se lembra que foram mais de 3 meses de trabalho só pra construir a ONGAUHU - Casa Grande da Festa e que o planejamento de toda a festa leva mais de uma ano: tem que preparar roçado de macaxeira, de onde vai sair a MANDEGUI (farinha de macaxeira branca que será distribuída aos participantes para tomar com o caldo das caças no leite da castanha: o MINÃ. Da mesma forma é o preparo do sal tradicional extraído do palmito do tronco da palmeira Babaçu, após intenso processo de troca de conhecimentos no preparo. Ou ainda a coleta da Castanha do Brasil, que será fará parte da cerimônia de partilha, que junto com a MINÃ compõem o momento alto da Festa. Afirma porém, que tudo isso é realizado com apoio das outras aldeias do Povo, que se empenham conjuntamente.
Ainda para dar condições de abrigo para os convidados mais distantes, construíram a Casa da Cozinha, a Casa do Moquem onde a caça que chega do mato é entregue ao dono da festa e este por sua vez ao responsável pelo cuidado com os produtos para evitar se estraguem e com a necessidade de manter fogo de lenha diretamente acesso debaixo do jirau, expulsando as moscas.
Tapi manifesta-se dizendo que o maior desafio foi encarar a pouca idade, apenas 21, por ser jovem muitos não acreditavam que daria conta de coordenar, de ser o DONO da Festa, e que teve como exemplo seu avô KOAHÃ (já falecido), que também ainda jovem realizou a MBOTAWA. Ele nos diz que encarou para provar para os mais jovens que a cultura tradicional não pode morrer, porque os mais idosos estão morrendo e se eles não assumirem morrerão juntos. Afirma que o que mais lhe motiva na realização é que "isso é a força da cultura, vem da raíz e não pode deixar de fazer, porque é o momento de receber as famílias e fazer a partilha.
No dia 19 foi o momento da chegada dos caçadores com os resultados da caçada. Foram divididos em cinco grupos e cada um desses com suas subdivisões de trabalho: os caçam, os que pescam e os que preparam por meio de MOQUÉM as caças, de forma que elas moqueadas aguentarão várias dias até o retorno e a festa. Ao todo mais de 20 famílias participaram do puxirum/mutirão da caça/pesca, resultando em mais de 400kg de carne de diversos tipos de caça (anta, porcão, veado) e os peixes. Tapi explica que todos os momentos de preparação da MBOTAWA é uma grande escola para os mais jovens e novos, pois vão aprendendo todo o processo de preparação com os mais idosos: desde como se encontra a caça, a preparar o jirau e fazer o moquem, confecção do jamanxin de palha que será utilizado no transporte dos moquéns de caça e pesca. Em cada grupo tem o professor da cultura.
No dia 20 logo cedo começam a chegar as demais aldeias e as rodas de danças e flautas tomam contam juntamente com cantos, podendo ser interpretada como uma "roda de diálogo cultural", composto pela IRERUÁ - flauta de taboca, onde as mulheres participarão, entretanto só podem escolher para dançar homens que sejam de clãs diferente do seu, ou seja Tarawé só pode dançar com Mutunaguera.
A pintura corporal ou a participação nas rodas de danças e flauta não é feita por todos. As pessoas especiais só poderão entrar em cena mediante liberação do chefe da família de clã diferente do seu, os quais lhe consideram especial por ter ajudado nos cuidados funerários de algum parente, porque clã trocado é que faz todo o processo, o que gera um cuidado maior do que recebeu o apoio, por isso durante a Festa tem um momento específico para este gesto de agradecimento.
Podemos perceber que esta é a "Festa do Cuidado", porque tudo é feito mediante troca de cuidados entre os clãs: a pintura corporal deve ser feita pelo chefe da família, podendo este passar responsabilidade para filho ou filha; caso outra pessoa do clã de fora da família o pinte, terá que ir se justificar com o chefe, pois quebrou a linha do cuidado de responsabilidade deste. No momento da alimentação por exemplo, quem é Mutum vai servir os Tarawé e vice-versa.
Cacique Duca me apresenta o Perembi - jabuti pequeno, diz que quando ele chega no pátio da aldeia vai ter bastante caça, pesca e festa. Os desenhos no casco do Perembi inspiram as pinturas corporais: parte do peito a pintura masculina e a parte do casco a pintura feminina, a qual é feita com amêndoa torrada do coco babaçu com óleo do mesmo, algumas pinturas duram dias, outras podem sair com facilidade no banho.
Cada abraço partilhado, cada roda de dança e flauta nos dá a certeza de que só a força da cultura pode manter um povo unido, mesmo tendo sofrido todo tipo de violências...o Bem Viver se faz nas pequenas coisas que se tornam grandes na vida do Povo Tenharim.
Breve retornaremos com a segunda parte desta narrativa do Bem Viver.